Artigo 1º do Código Penal Militar: Legalidade como Pilar do Direito Penal Castrense

Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969
Art. 1º – “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
Introdução
O artigo 1º do Código Penal Militar (CPM), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, consagra o princípio da legalidade, também conhecido como princípio da reserva legal. Este preceito é considerado um dos mais importantes pilares do Direito Penal, e sua presença no Código Penal Militar reforça o compromisso do Estado brasileiro com os direitos fundamentais mesmo dentro do sistema de justiça militar, cuja estrutura é por vezes tida como mais rígida e hierarquizada.
Neste artigo, abordaremos a origem, evolução, e relevância do artigo 1º do CPM, seus reflexos na jurisprudência militar, sua relação com o Direito Penal comum e o Direito Constitucional, e os riscos de retrocesso caso esse princípio seja ignorado ou relativizado. Ao final, apresentamos uma seção de perguntas frequentes (FAQ) com o intuito de esclarecer dúvidas práticas sobre o tema.
1. Fundamento Constitucional do Princípio da Legalidade

A norma insculpida no artigo 1º do Código Penal Militar tem como espelho direto o artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988, que determina:
“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
Esse princípio, de origem liberal e iluminista, surgiu como uma forma de limitação ao poder punitivo do Estado, que durante regimes absolutistas exercia esse poder de maneira arbitrária e desproporcional. A legalidade, nesse contexto, é a proteção do cidadão frente à opressão estatal. Nenhum comportamento pode ser considerado crime sem que haja, previamente, uma lei formal que o defina. Da mesma forma, nenhuma pena pode ser aplicada sem estar previamente estabelecida em lei.
No âmbito militar, essa garantia é ainda mais crucial. Isso porque o regime jurídico dos militares das Forças Armadas e das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares é marcado por uma série de deveres, obrigações e restrições que não se aplicam aos civis. Assim, a exigência de legalidade se impõe como salvaguarda contra abusos e arbitrariedades no âmbito da Justiça Militar.
2. Origem e Contexto Histórico do Código Penal Militar
O Código Penal Militar foi criado em um contexto de regime autoritário, durante o período da ditadura militar brasileira. A promulgação do Decreto-Lei nº 1.001/1969 ocorreu em meio a um cenário de forte repressão política e controle social. Ainda assim, o legislador militar reconheceu a importância de garantir um núcleo mínimo de legalidade, estabelecendo, logo no artigo 1º, que não haveria crime ou pena sem lei anterior.
Essa escolha revela o caráter atemporal e universal do princípio da legalidade, que transcende ideologias e governos. Mesmo em contextos de exceção, como o regime militar, o legislador reconheceu que o direito penal não pode prescindir da lei escrita e anterior ao fato.
3. Estrutura e Conteúdo do Artigo 1º do CPM
O artigo 1º do CPM é composto por dois enunciados complementares:
- “Não há crime sem lei anterior que o defina” – que veda a retroatividade penal incriminadora e proíbe a criação de tipos penais por analogia ou costumes.
- “Nem pena sem prévia cominação legal” – que proíbe a aplicação de sanções penais não previstas em lei.
Essas cláusulas garantem segurança jurídica e previsibilidade aos jurisdicionados. O militar deve saber, de antemão, quais condutas são proibidas e quais penas poderão lhe ser aplicadas caso descumpra a norma. Qualquer sanção penal aplicada sem base legal expressa será nula.
4. A Legalidade no Âmbito do Direito Penal Militar
No contexto castrense, a legalidade assume feições ainda mais relevantes. A disciplina e a hierarquia, fundamentos das instituições militares, exigem condutas rigidamente padronizadas. Mas, justamente por isso, os limites da atuação estatal também devem ser rigorosamente definidos.
Sem o princípio da legalidade, o militar ficaria exposto à criminalização arbitrária de condutas que não estejam previstas em lei, o que afetaria sua liberdade, sua honra e sua carreira. Esse risco é especialmente sensível nas chamadas infrações disciplinares que, embora não sejam crimes propriamente ditos, podem gerar confusão com delitos previstos no CPM.
Além disso, o artigo 1º veda que normas administrativas ou atos internos da corporação substituam a lei penal. Regulamentos, portarias e manuais de conduta não têm força de lei para criar crimes ou cominar penas no âmbito penal militar.
5. Relação com o Princípio da Tipicidade

O princípio da legalidade se desdobra no princípio da tipicidade. Apenas a conduta humana que se amolda perfeitamente a uma descrição legal (tipo penal) pode ser considerada crime. A tipicidade impede a analogia “in malam partem” (em desfavor do réu) e resguarda o indivíduo contra interpretações extensivas que criem tipos penais por semelhança.
Por exemplo, se um militar realiza uma crítica a um superior em contexto informal e sem intenção de menosprezo, essa conduta não pode ser enquadrada como “desrespeito a superior” (art. 160 do CPM), salvo se estiver perfeitamente adequada ao tipo penal. Essa interpretação protege o militar da subjetividade e da arbitrariedade, reforçando a segurança jurídica.
6. Consequências da Violação ao Princípio da Legalidade
A violação ao artigo 1º do CPM acarreta nulidade absoluta do processo penal militar. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal Militar (STM) têm reconhecido que a ausência de previsão legal expressa de um crime ou de uma pena impede o prosseguimento da ação penal ou a execução da sanção.
Além disso, constitui erro judiciário e dá ensejo à reparação por danos morais e materiais ao militar atingido. A responsabilidade do Estado, nesse caso, é objetiva, nos termos do artigo 37, §6º da Constituição Federal.
7. A Reserva Legal no Código Penal Militar: Espécies de Leis Admitidas
É importante ressaltar que o artigo 1º do CPM exige lei formal, isto é, norma aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo chefe do Poder Executivo. Decretos, resoluções, instruções normativas e regulamentos internos não têm força para criar tipos penais ou cominar penas.
Ainda que os regulamentos militares prevejam sanções disciplinares, eles não podem ser utilizados como fundamento para punição penal. Tal distinção é essencial para evitar confusão entre ilícito penal e ilícito disciplinar.
8. Retroatividade da Lei Penal Mais Benéfica
Embora o artigo 1º proíba a retroatividade da lei penal incriminadora, ele admite — por força do princípio da legalidade em sua dimensão garantista — a retroatividade da lei penal mais benéfica, conforme disposto no artigo 3º do próprio Código Penal Militar:
Art. 3º do CPM: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
Assim, o militar tem o direito de se beneficiar de leis que reduzam penas, descriminalizem condutas ou de qualquer modo favoreçam sua situação jurídica, mesmo que o fato tenha ocorrido antes da entrada em vigor da nova norma.
9. Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o Tema
A jurisprudência nacional tem reiteradamente reafirmado a importância do princípio da legalidade penal. O Superior Tribunal Militar (STM) tem decidido, por exemplo, que:
“É nulo o processo penal militar baseado em norma administrativa, sem previsão expressa no Código Penal Militar. A legalidade penal exige que a conduta esteja descrita em lei anterior, formal e material.” (STM, Apelação nº 7000477-38.2017.7.00.0000)
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucional norma estadual que criava figura penal sem observância do princípio da reserva legal, mesmo fora do contexto militar.
10. A Legalidade no Direito Internacional dos Conflitos Armados
O Código Penal Militar não pode ser interpretado isoladamente do Direito Internacional. O Brasil é signatário de convenções que versam sobre o direito penal aplicável em tempos de guerra, como as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais.
Nessas normas, o princípio da legalidade também é reafirmado. Um militar brasileiro, por exemplo, não pode ser julgado por crime de guerra sem que haja previsão legal interna ou internacional expressa. Isso reforça o caráter universal do princípio, válido tanto em tempos de paz quanto de conflito.
11. Importância Prática para a Advocacia Criminal Militar
Para advogados que atuam na seara militar, o artigo 1º do CPM é uma ferramenta indispensável de defesa técnica. Questionar a ausência de tipicidade legal, impugnar analogias incriminadoras e exigir a correta aplicação das normas penais são formas legítimas de resguardar os direitos do acusado e garantir um processo penal justo.
O controle da legalidade penal é, portanto, uma das primeiras providências que um advogado deve tomar ao analisar uma acusação criminal militar. Muitas vezes, a simples ausência de previsão legal adequada pode conduzir à absolvição sumária.
Conclusão

O artigo 1º do Código Penal Militar representa a consagração do princípio da legalidade, verdadeiro pilar do Estado Democrático de Direito. Sua aplicação no âmbito castrense é um imperativo de justiça, segurança jurídica e proteção dos direitos fundamentais dos militares. Ignorar esse princípio seria retroceder a tempos de arbítrio e insegurança jurídica — algo absolutamente incompatível com a Constituição de 1988.
Mesmo inserido em um código elaborado durante o regime militar, o artigo 1º do CPM permanece atual e indispensável. Ele representa o elo entre a autoridade estatal e o respeito aos direitos humanos, funcionando como limite ao poder punitivo das instituições militares.
FAQ — Perguntas Frequentes
1. O que diz o artigo 1º do Código Penal Militar?
R: O artigo 1º estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Trata-se do princípio da legalidade penal.
2. O princípio da legalidade se aplica aos militares?
Sim. Apesar do regime jurídico especial, os militares são protegidos pelo princípio da legalidade penal, o que impede a punição por condutas não previstas em lei.
3. Pode-se punir um militar com base em regulamento interno?
Não. Regulamentos internos não têm força de lei penal. A conduta precisa estar descrita expressamente em norma penal válida, aprovada pelo Congresso Nacional.
4. O que acontece se um militar for processado com base em norma não prevista em lei?
A denúncia deve ser rejeitada ou o processo arquivado por ausência de justa causa, com possível indenização ao militar em caso de prejuízo.
5. A lei penal pode retroagir?
Sim, mas somente se for mais benéfica ao réu. Se for prejudicial, aplica-se apenas a fatos futuros.
6. A Justiça Militar pode interpretar extensivamente a lei penal?
Não para prejudicar o réu. A interpretação extensiva só pode ser usada para beneficiar o acusado, nunca para criar crimes ou agravar penas.
7. Qual a importância prática do artigo 1º do CPM para a defesa militar?
Ele é essencial para a análise da legalidade da acusação. Muitos processos são extintos por ausência de tipicidade penal, o que deve ser arguido desde a primeira oportunidade pela defesa.
8. Existe diferença entre legalidade penal comum e militar?
Na essência, não. O princípio é o mesmo, mas a aplicação é feita em contexto diverso, adaptado à vida castrense, sem perder sua natureza constitucional.
9. O artigo 1º protege contra decisões arbitrárias?
Sim. Ele impede que juízes ou comandantes militares apliquem sanções penais com base em entendimentos subjetivos ou normas não escritas.
10. É possível mudar esse princípio por emenda constitucional?
Tecnicamente sim, mas seria uma grave violação aos direitos fundamentais e uma ruptura com tratados internacionais que garantem a legalidade penal.