Habeas corpus – preconceito racial, trancamento da ação penal

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE ……………….. .

HABEAS CORPUS

                                                           Colenda Câmara,

                                                           Eminente Relator,

                                                           ………………………………….., brasileiro, divorciado, advogado regularmente inscrito na OAB-…. sob o nº ….., premissa máxima vênia vem perante a esta Egrégia Corte, com fundamento no artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal, combinado com artigo 647 e seguintes do Código de Processo Penal, impetrar uma ordem de

                           “HABEAS CORPUS”

em favor da Paciente ……………………….., brasileira, separada judicialmente, comerciante, residente à Rua …………… n.º ……, centro, nesta cidade, contra despacho da lavra da Juíza de Direito da Terceira Vara Criminal da Comarca de …………, que recebeu denúncia contra a pessoa da Paciente, inobstante manifesta ilegitimidade ad causam do Ministério Público, face o fato narrado na denuncia constituir in tese, injúria qualificada por preconceito (art. 140, § 3º CPB) cuja a ação só se procede mediante queixa do ofendido. E, face aos fatos, razões e fundamentos a seguir perfilados.

SÚMULA DOS FATOS

1                                                         A Paciente foi indiciada em inquérito policial na Segunda Delegacia de Polícia de ……………., mediante representação criminal, como incursa nas sanções dos artigos 139, 140 § 3º, todos do Código Penal, conforme documentos em apenso.

2                                                         Inobstante, os autos da persecução policial indicarem de modo inequívoco de que a conduta atribuída a paciente, in tese, se amoldasse no tipo penal do artigo 140 § 3º de nosso Pergaminho Repressivo, o Ministério Público equivocadamente ofertou denúncia no artigo 20 da Lei 7.716/89, pelo seguinte fato:

“Os fundamentos da pretensão ministerial repousam na ocorrência dos seguintes fatos e incidência penal que seguem descritos na exordial acusatória:

Narra os autos de Inquérito Policial em epígrafe que, no dia ………………………., a vítima

………………….., brasileiro, casado, vendedor, natural de ……………, nascido a …………., filho de ……………………… e de …………………….., residente na Avenida ……………….., Bairro ………, nesta cidade,

vendeu um consórcio de um veículo …………., ……………., marca …………, no valor de R$ ………………. (…………………………………….. reais),

A denunciada deu em pagamento ……. cheques um R$ ………. (…………………..) e outro R$ ………. (…………………..), o primeiro referente a taxa de administração e o segundo referente a primeira parcela do consórcio.

Dias depois a denunciada sustou o pagamento dos cheques. Passados ….. (……) dias a vítima foi até a loja da denunciada, para saber os motivos de ter sustado o pagamento dos cheques, oportunidade em que esta começou caluniar a vítima a xingá-la de ” negro safado”, revelando a sua manifesta discriminação e preconceito racial.

Assim procedendo, a acusada subsumiu no disposto estatuído no artigo 20, da Lei ‘7.716/89.” (GRIFEI).

3                                                         Se o denunciado se defende dos fatos narrados na denúncia, e não da tipificação dada pelo Ministério Público, tem-se que a ação penal para a conduta atribuída à paciente é de iniciativa privada o que torna o Parquet parte ilegítima para intentá-la tornando o processo nulo ab initio, e o seu prosseguimento flagrante constrangimento e coação ilegal.

4                                                         Com a inobservância da norma imperativa preceituada no artigo 43, inc. III, do CPP, o despacho que recebeu a denúncia, acarretou notória e indisfarçável nulidade absoluta do processo (art. 564, inc. II), passível do trancamento da ação, via do presente writ, por falta de condição de procedibilidade e ilegitimidade ativa.

                                                           DO DIREITO

                                                           Edita o Código Penal, com referência a conduta atribuída a Paciente narrada na denúncia:

Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo a dignidade ou o decoro:

(omissis)

§ 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem:

                                                           Com relação a ação penal do delito em apreço, dispõe nosso substantivo penal:

Art. 145 – Nos crimes previstos neste capítulo somente se procede mediante queixa, salvo, quando no caso do artigo 140, parágrafo segundo, da violência resulta lesão corporal.

Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do n.º I do artigo 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n.º II do mesmo artigo.

                                                           Por seu turno, o Código de Processo Penal, estabelece que a legitimidade para a propositura da ação penal privada é exclusiva do ofendido ou seu representante legal. Diz a lei:

Código de Processo Penal

Art. 30 – Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada.

                                                            Dispõe, ainda, o Código de Processo Penal:

Art. 564 A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:

          (omissis)

          II – por ilegitimidade da parte

          (…)

                                                           Tanto a doutrina quanto a jurisprudência já firmaram entendimento de que o fato de alguém ofender a dignidade ou o decoro de outrem utilizando elementos referentes a raça, cor, religião ou origem, constitui o crime de injúria qualificada por preconceito previsto no § 3º, acrescentado ao artigo 140 do Código Penal, pela lei n.º 9.459, de 13 de Maio de 1997, vez que o objeto jurídico atacado é a honra subjetiva da vítima e não a pratica, o induzimento ou a incitação à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, prevista no artigo 20 da 7.716/89 que exigem para a sua configuração uma conotação mais ampla.

                                                           Ensina o festejado Damásio E. de Jesus em sua obra “ Novíssimas Questões Criminais”, Ed.Saraiva, 2a Edição:

“De acordo com Lei n.º 9.459/97, chamar alguém de “nego sujo”, “preto vagabundo”, “negão malandro”, “africano imbecil”, “judeu avarento”, “nordestino bobo”, “baiano vadio”, “japa atrasado” etc., desde que com vontade de ofender-lhe a honra subjetiva relacionada com a cor, procedência, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de um ano de reclusão, além de multa” (Pág.110).

                                                           É no mesmo sentido a lição do iminente doutrinador Guilherme de Souza Nucci:

“Assim, aquele que, atualmente, dirige-se a uma pessoa de determinada raça, insultando-a com argumentos ou palavras de conteúdo pejorativo, responderá por injúria racial, não podendo alegar que houve uma injúria simples, nem tampouco uma mera exposição do pensamento (como dizer que todo “judeu é corrupto” ou que “negros são desonestos”), uma vez que há limite para tal liberdade. Não se pode acolher a liberdade que fira direito alheio, que é no caso, o direito à honra subjetiva. Do mesmo modo, quem simplesmente dirigir a terceiro palavras referentes a “raça”, “cor”, “etnia”, “religião” ou “origem”, com o ,intuito de ofender, responderá por injúria racial ou qualificada”.(in “Código Penal Comentado”- Edição 2000 – pag.377)

                                                           Nossos Tribunais Superiores Pátrios chamados a decidir questões análogas, assim se pronunciaram:

”CALÚNIA, DIFAMAÇÃO E INJÚRIA – Injúria qualificada (artigo 140, parágrafo terceiro, do CP) – Caracterização.

Agente que utiliza palavras depreciativas referentes a raça e cor com o intuito de ofender a honra subjetiva da vítima. Inaplicabilidade do artigo 20 da Lei nº 7.716/89.” (TJSP – HC nº 249.792-3/0 – 3ª C – Rel. Des. Luiz Pantaleão – J. 17.02.98). 02 752/594

“CRIME CONTRA A HONRA – Injúria qualificada (artigo 140, parágrafo terceiro, do CP) – Caracterização – Agente que utiliza palavras depreciativas referentes a raça e cor com o intuito de ofender a honra subjetiva da vítima – Inaplicabilidade do artigo 20 da Lei nº 7.716/89. A utilização de palavras depreciativas referentes a raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da pessoa, caracteriza o crime previsto no parágrafo terceiro do artigo 140 do CP, ou seja, injúria qualificada, não o crime previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, que trata dos crimes de preconceito de raça ou de cor.

AÇÃO PENAL – Crime contra a honra – Injúria – Ação proposta pelo Ministério Público – Inadmissibilidade – Apuração que depende da iniciativa do ofendido – Nulidade decretada – Inteligência do artigo 564, II, do CPP. A persecução penal para apuração do crime de injúria depende da iniciativa do ofendido, devendo o processo ser anulado “ab initio” quando proposto pelo Ministério Público, que é parte ilegítima, conforme disposto no artigo 564, II, do CPP.” (TJSP – HC nº 249.792-3/0 – Monte Aprazível – 3ª Câm. – Rel. Des. Luiz Pantaleão – J. 17.02.98). RT 752/594

                                    Conforme o entendimento unânime da doutrina processual, tanto a ação civil como a penal, o direito de se exigir, legitimamente, o provimento jurisdicional, está condicionado ao cumprimento de determinadas condições de ação, que genericamente são: a legitimidade da parte (ad causam), o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido. Especificamente, no processo penal, acrescenta-se outras condições de procedibilidade, dentre as quais figura a ação penal privada, em determinados crimes, não estando legitimado o Ministério Público para assumir o polo ativo do processo.

                                                           Assim ensina o festejada doutrinadora  Ada Pellegrini Grinover, em sua obra “As Nulidades no Processo Penal”, 2ª Edição, pag.  57:

“Quando faltar uma só que seja das condições da ação ou de procedibilidade, diz-se que o autor é carecedor desta. A conseqüência é que o juiz, embora exercendo a função jurisdicional, não chegará a apreciar o mérito.

É dever do juiz a verificação da presença das condições da ação e de procedibilidade o mais cedo possível e de ofício. Nesse caso, trancarã a ação, por ser o autor dela carecedor. Se, no entanto, não o fizer, nem na sentença final (lembrando que não há preclusão, nem mesmo pro judicato, para a reapreciação da matéria), o processo será nulo ab initio (art. 564, II, do CPP)”.

                                                           A dependência  da queixa do ofendido ou seu representante legal, para legitimar a atuação do Ministério Público,  é abordada com muita propriedade pelo insigne doutrinador Eugênio Raúl Zaffaroni, nos seguintes termos:

“A ação penal pública condicionada é regida pela regra – para muitos, princípio – da oportunidade. É que razões sobram para que assim procedesse o legislador, pois, muitas vezes, pode ter o ofendido um legítimo interesse em que o fato não ganhe o publicidade, e, nesse caso, o interesse do ofendido se sobrepõe ao estatal, na repressão do ato criminoso. Por tal razão, a lei faz a atuação do Ministério Público ficar na dependência da manifestação do ofendido, mas, uma vez oferecida a denúncia, a representação torna-se irretratável, prosseguindo a ação penal condenatória até o seu final”.(grifei) (in “Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, Ed. 1997 -Pág. 775).

                                                           O exercício da ação penal é de natureza pública, consoante dispõe a regra do artigo 100, do Código Penal. tratando-se, porém, de crime contra a honra (art. 138/140 CPB), a ação penal só se procede mediante queixa. Na hipótese do artigo 145, do Código Penal a ação penal é privativa do ofendido, obedecendo o princípio da conveniência, que é absoluto, e da disponibilidade, que é relativo, posto que ao titular do direito à queixa, como condição da ação.

                                                           Não é difícil perceber que  o Órgão Ministerial agiu fora da órbita de suas atribuições institucionais, atropelando a Lei, e desrespeitando o direito tutelado ao ofendido ou seu representante legal.

                                                           É perfeitamente própria a via estreita do presente writ para o conhecimento e deferimento do pleito, vez que desnecessário o ingresso aprofundado no mérito da prova.

                                                           Caberia ao Magistrado, diante da manifesta ilegitimidade do Ministério Público para ofertar a denúncia, negar seu recebimento, por falta de condição procedibilidade, conforme dispõe o artigo 43, III, do Código de Processo Penal, não o fazendo impingiu ao Paciente constrangimento ilegal, ao submete-lo ao persecutio criminis in judicio via de um processo nulo ab initio”, conforme o comando normativo do artigo 564, II, do Código de Processo Penal. Podendo, assim, valer-se do presente habeas corpus, para o trancamento da ação penal, nos termos do artigo 648, VI, do CPP.

                                                      EX POSITIS,

Espera o Impetrante, seja a presente ordem de HABEAS CORPUS, conhecida e concedida, para o fim do trancamento da ação penal por nulidade manifesta do processo, cassando, assim, o despacho da lavra do ilustre Magistrado da Terceira Vara Criminal da Comarca de Anápolis, vez que ilegítimo o Ministério Público para propor a ação penal, no crime de injúria por preconceito, (art. 140, § 3º CPB) cuja legitimidade é exclusiva do ofendido ou seu representante legal, através de queixa, pois desta forma esta Colenda Câmara, estará como de costume, restabelecendo o império da Lei, do Direito e da Excelsa JUSTIÇA.

                                                           LOCAL E DATA

                                                           ___________________

                                                                            OAB