Artigo 14 do Código de Processo Penal: O Direito de Requerer Diligências e a Discricionariedade da Autoridade Policial

Artigo 14 do Código de Processo Penal O Direito de Requerer Diligências e a Discricionariedade da Autoridade Policial

O Código de Processo Penal e o Papel das Diligências na Busca pela Verdade

O Código de Processo Penal (CPP), instituído pelo Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, é o instrumento que organiza e regula o funcionamento da persecução penal no Brasil. Ele estabelece as normas que regem desde a investigação criminal até o julgamento definitivo, sendo essencial para o equilíbrio entre o poder punitivo do Estado e as garantias fundamentais do cidadão.

Dentro dessa estrutura, o artigo 14 do CPP tem uma importância singular. Ele trata da possibilidade de o ofendido (vítima) e o indiciado (pessoa investigada) requererem diligências durante o inquérito policial, ainda que sua realização dependa da discricionariedade da autoridade policial.

Em outras palavras, o artigo representa uma abertura democrática no âmbito do inquérito policial, que, por natureza, é um procedimento inquisitivo e sigiloso. Trata-se de um direito de participação que visa assegurar um mínimo de equilíbrio e transparência no curso das investigações criminais.

Compreender o alcance e os limites do art. 14 é fundamental não apenas para advogados criminalistas, mas também para qualquer cidadão que deseje entender como funciona a investigação preliminar no sistema penal brasileiro.


1. Texto Legal e Contexto Histórico do Artigo 14 do CPP

O artigo 14 do Código de Processo Penal dispõe:

Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

Este dispositivo foi mantido praticamente inalterado desde a promulgação do CPP em 1941, o que demonstra a permanência de sua relevância no ordenamento jurídico.

Embora o inquérito policial seja um procedimento de caráter administrativo e inquisitivo, em que não se aplicam integralmente os princípios do contraditório e da ampla defesa, o legislador reconheceu a necessidade de permitir certa intervenção das partes interessadas, para que pudessem colaborar com a busca da verdade real.

O contexto histórico da norma revela uma tentativa de humanizar a investigação criminal, evitando que o investigado ou a vítima ficassem totalmente à mercê da vontade exclusiva da autoridade policial.


2. O Inquérito Policial: Natureza, Função e Estrutura

Para entender o alcance do art. 14, é preciso lembrar que o inquérito policial é a primeira etapa da persecução penal, destinada a colher elementos de informação que permitam ao Ministério Público ou ao querelante propor, ou não, a ação penal.

Suas principais características são:

  • Inquisitivo: não há contraditório pleno;
  • Sigiloso: pode ser mantido em reserva para garantir a eficácia da investigação;
  • Escrito: todos os atos devem ser formalizados por escrito;
  • Indisponível: uma vez instaurado, não pode ser arquivado pela autoridade policial sem ordem judicial;
  • Discricionário: o delegado de polícia tem liberdade técnica para conduzir a investigação.

Nesse contexto, o art. 14 funciona como um contrapeso democrático à natureza inquisitiva do inquérito. Ele possibilita que tanto o ofendido quanto o indiciado requeiram diligências, participando indiretamente da formação do conjunto probatório que embasará o oferecimento (ou não) da denúncia.


3. Sujeitos Legitimados a Requerer Diligências

a) O Ofendido ou seu Representante Legal

O ofendido, também chamado de vítima, possui legítimo interesse na apuração do crime, sobretudo nos casos de ação penal privada ou pública condicionada à representação.

Ele pode requerer diligências como:

  • Oitiva de novas testemunhas;
  • Requisição de exames periciais;
  • Reconstituição do crime;
  • Requisição de imagens de câmeras de segurança;
  • Juntada de documentos comprobatórios.

O representante legal do ofendido (por exemplo, no caso de vítima menor de idade ou incapaz) também possui essa legitimidade.

b) O Indiciado

O indiciado — pessoa formalmente apontada como suspeita de ter cometido o crime — também tem o direito de participar do inquérito.

Embora o procedimento seja inquisitivo, o art. 14 garante-lhe a possibilidade de requerer diligências que comprovem sua inocência, como:

  • Oitiva de testemunhas que confirmem sua versão;
  • Requisição de perícia que demonstre inexistência de dolo ou materialidade;
  • Apresentação de documentos que desconstituam indícios de autoria.

4. A Discricionariedade da Autoridade Policial

A parte final do artigo 14 é clara ao afirmar que a diligência requerida “será realizada, ou não, a juízo da autoridade”.

Isso significa que o delegado de polícia tem discricionariedade técnica para decidir se o pedido será deferido ou indeferido, conforme sua avaliação da necessidade, utilidade e viabilidade da diligência.

Entretanto, essa discricionariedade não é arbitrária. A autoridade policial deve fundamentar sua decisão, especialmente em caso de indeferimento, sob pena de violação aos princípios da legalidade e da motivação dos atos administrativos.

O indeferimento injustificado pode ser questionado:

  • Por representação ao Ministério Público, que supervisiona o inquérito;
  • Por pedido ao juiz das garantias (quando implementado);
  • Por mandado de segurança ou habeas corpus, em situações excepcionais.

5. Princípios Constitucionais Relacionados

Mesmo sendo de 1941, o artigo 14 do CPP deve ser interpretado à luz da Constituição Federal de 1988, que reforçou as garantias fundamentais do cidadão.

Os principais princípios relacionados são:

  • Devido Processo Legal (art. 5º, LIV, CF): nenhuma investigação pode violar direitos sem base legal.
  • Ampla Defesa e Contraditório (art. 5º, LV, CF): ainda que mitigados no inquérito, devem ser assegurados minimamente.
  • Verdade Real: o processo deve buscar a verdade substancial, e não apenas formal.
  • Proporcionalidade e Razoabilidade: diligências desnecessárias podem ser indeferidas, mas as relevantes devem ser realizadas.

6. Jurisprudência e Entendimento dos Tribunais Superiores

A jurisprudência brasileira reconhece amplamente a validade do art. 14, mas ressalta os limites desse direito:

STJ — RHC 41.945/SC:
“O indeferimento, pela autoridade policial, de diligência requerida pela defesa não acarreta nulidade do inquérito, por se tratar de procedimento de natureza inquisitiva.”

STF — HC 82.354/SP:
“A autoridade policial deve indeferir diligências manifestamente protelatórias, mas não pode recusar as que possam contribuir para o esclarecimento da verdade.”

Essas decisões demonstram que, embora o inquérito não seja o local do contraditório pleno, o direito de colaboração da defesa e da vítima deve ser respeitado de forma proporcional e fundamentada.


7. Exemplo Prático: O Pedido de Diligência como Ferramenta de Defesa

Imagine o seguinte caso:

Um motorista é investigado por lesão corporal culposa na direção de veículo automotor. A defesa, com base no art. 14, requer:

  1. Perícia no veículo, para verificar falha mecânica;
  2. Oitiva de testemunha ocular que confirma a versão do indiciado;
  3. Juntada de imagens de câmeras de segurança de um comércio próximo.

O delegado analisa o pedido e decide deferir parcialmente, autorizando a perícia e a oitiva, mas indeferindo a juntada das imagens por entender que já não existem mais ou são irrelevantes.

Essa atuação equilibrada é a expressão prática do art. 14, permitindo participação das partes, mas preservando o poder técnico da autoridade investigante.


8. O Artigo 14 e o Advogado Criminalista

Para o advogado criminalista, o art. 14 é uma ferramenta estratégica de grande importância.

Durante o inquérito, é possível:

  • Requerer diligências em favor de seu cliente;
  • Demonstrar proatividade na defesa;
  • Evitar o oferecimento de denúncia por falta de justa causa;
  • Influenciar positivamente o entendimento do Ministério Público.

O advogado, portanto, atua de forma técnica e preventiva, utilizando o art. 14 para corrigir distorções, incluir provas e garantir a lisura da investigação.

Para saber mais sobre como a advocacia criminal pode atuar de forma estratégica na defesa de direitos durante o inquérito policial, visite nossa seção de especialidades em Direito Processual Penal.


9. A Relação Entre o Artigo 14 e o Sistema Acusatório

Com a adoção do sistema acusatório pela Constituição de 1988, reforçada pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o processo penal brasileiro consolidou a separação entre as funções de investigar, acusar e julgar.

O art. 14 do CPP, interpretado nesse contexto, reforça que a investigação deve ser transparente e participativa, evitando que o inquérito se torne um instrumento de perseguição.

O juiz das garantias, quando plenamente implementado, deverá supervisionar o respeito a esse direito, assegurando que diligências relevantes não sejam indevidamente negadas.


10. Limites e Possíveis Abusos

Apesar de sua relevância, o art. 14 não pode ser usado de forma abusiva.

A autoridade policial pode indeferir diligências quando forem:

  • Impertinentes (sem relação com o fato investigado);
  • Protelatórias (destinadas apenas a atrasar a investigação);
  • Redundantes (já realizadas ou com resultado conhecido);
  • Impossíveis (inviáveis técnica ou materialmente).

O equilíbrio entre eficiência investigativa e garantias individuais é o que torna o art. 14 uma norma de natureza garantista e funcional ao mesmo tempo.


11. A Relevância do Artigo 14 para o Estado Democrático de Direito

O art. 14 do CPP é um exemplo concreto de como o direito processual penal brasileiro evoluiu para equilibrar o poder do Estado e as liberdades individuais.

Ele simboliza a transparência, a colaboração e a confiança entre as partes, permitindo que o ofendido e o indiciado participem da busca pela verdade real, mesmo em uma fase predominantemente inquisitiva.

Esse equilíbrio é essencial para a credibilidade da justiça criminal e para a preservação dos direitos humanos dentro da persecução penal.


FAQ — Perguntas Frequentes Sobre o Art. 14 do CPP

1. O que é uma diligência no inquérito policial?

É qualquer ato ou providência investigativa destinada a esclarecer os fatos, como ouvir testemunhas, realizar perícias, coletar imagens ou documentos.

2. Quem pode requerer diligências com base no art. 14 do CPP?

O ofendido (ou seu representante legal) e o indiciado.

3. O delegado é obrigado a realizar todas as diligências pedidas?

Não. O artigo diz que a diligência “será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, o que significa que o delegado decide conforme sua avaliação técnica.

4. O indeferimento de uma diligência pode ser questionado?

Sim. O interessado pode representar ao Ministério Público, ou, em casos excepcionais, recorrer ao Poder Judiciário.

5. O indeferimento gera nulidade do inquérito?

Não. A jurisprudência entende que o indeferimento de diligência não anula o inquérito, desde que não haja prejuízo comprovado à defesa.

6. O advogado pode acompanhar as diligências?

Sim, desde que não comprometa o sigilo necessário à investigação. O Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/1994) garante o direito de acesso aos autos e acompanhamento dos atos não sigilosos.

7. O Ministério Público pode determinar a realização de diligências?

Sim. Como titular da ação penal pública, o MP pode requisitar diligências à autoridade policial, inclusive após o encerramento do inquérito.

8. O que acontece se o delegado negar um pedido sem justificar?

A recusa deve ser motivada. A ausência de fundamentação pode caracterizar abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, art. 33).

9. Esse direito se aplica também ao investigado em procedimento administrativo?

Sim, por analogia e pelos princípios do contraditório e ampla defesa, ele pode requerer diligências em qualquer procedimento que possa resultar em sanção.

10. Qual a importância prática do art. 14?

Ele permite atuação proativa da defesa e da vítima, contribuindo para a justiça da investigação e para a redução de erros judiciais.


Conclusão

O artigo 14 do Código de Processo Penal é uma das normas mais emblemáticas da fase investigativa.
Ele reafirma o compromisso do ordenamento jurídico brasileiro com um processo penal equilibrado, que respeita tanto a eficiência da investigação quanto os direitos fundamentais das partes.

Ao permitir que o ofendido e o indiciado requeiram diligências, o legislador buscou assegurar um mínimo de contraditório, compatível com a fase pré-processual, e garantir que a verdade real seja construída de forma ética, técnica e transparente.


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