Artigo 4º do Código de Processo Penal Militar: Tempo de Paz e de Guerra

Introdução
O Código de Processo Penal Militar (CPPM), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, é o diploma legal que regula o processo penal no âmbito da Justiça Militar brasileira. O artigo 4º desse código é um dos dispositivos mais relevantes para a delimitação da aplicação das normas processuais militares, pois define, de maneira detalhada, os espaços e situações em que o CPPM deve ser observado, tanto em tempo de paz quanto em tempo de guerra. Sua análise é fundamental para a compreensão do alcance da jurisdição militar, especialmente diante da complexidade das operações das Forças Armadas, da atuação extraterritorial do Brasil e do respeito às normas internacionais.
Este artigo jurídico pretende apresentar, de forma didática e aprofundada, a estrutura, o conteúdo e a importância do artigo 4º do CPPM, destacando seus desdobramentos práticos e teóricos, sua relação com o direito internacional e sua relevância para a proteção das instituições militares e da segurança nacional. Ao final, uma seção de perguntas frequentes (FAQ) esclarecerá dúvidas recorrentes sobre o tema.
1. Contextualização Histórica e Finalidade do CPPM
O Código de Processo Penal Militar foi criado em um contexto de reorganização das instituições militares e do ordenamento jurídico brasileiro, visando garantir a segurança nacional e a disciplina das Forças Armadas. O Brasil, ao longo de sua história, enfrentou diversos conflitos internos e externos, o que tornou necessária a elaboração de normas específicas para a persecução penal de delitos militares. O CPPM, portanto, não apenas disciplina o procedimento penal, mas também reflete a preocupação do Estado com a proteção das instituições militares e com a defesa da soberania nacional.
O artigo 4º, nesse contexto, surge como um marco definidor da competência da Justiça Militar e da aplicabilidade das normas processuais militares, estabelecendo critérios claros para sua incidência em diferentes situações, inclusive em ambientes internacionais e extraterritoriais.
2. Estrutura do Artigo 4º do CPPM
O artigo 4º do CPPM é um dispositivo extenso e detalhado, que pode ser dividido em três partes principais:
- A ressalva inicial quanto à prevalência de convenções, tratados e regras de direito internacional;
- A delimitação da aplicação das normas do CPPM em tempo de paz;
- A ampliação da aplicação em tempo de guerra.
O texto legal dispõe:
Art. 4º Sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, aplicam-se as normas dêste Código:
Tempo de paz
I – em tempo de paz:
a) em todo o território nacional;
b) fora do território nacional ou em lugar de extraterritorialidade brasileira, quando se tratar de crime que atente contra as instituições militares ou a segurança nacional, ainda que seja o agente processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira;
c) fora do território nacional, em zona ou lugar sob administração ou vigilância da fôrça militar brasileira, ou em ligação com esta, de fôrça militar estrangeira no cumprimento de missão de caráter internacional ou extraterritorial;
d) a bordo de navios, ou quaisquer outras embarcações, e de aeronaves, onde quer que se encontrem, ainda que de propriedade privada, desde que estejam sob comando militar ou militarmente utilizados ou ocupados por ordem de autoridade militar competente;
e) a bordo de aeronaves e navios estrangeiros desde que em lugar sujeito à administração militar, e a infração atente contra as instituições militares ou a segurança nacional;
Tempo de guerra
II – em tempo de guerra:
a) aos mesmos casos previstos para o tempo de paz;
b) em zona, espaço ou lugar onde se realizem operações de fôrça militar brasileira, ou estrangeira que lhe seja aliada, ou cuja defesa, proteção ou vigilância interesse à segurança nacional, ou ao bom êxito daquelas operações;
c) em território estrangeiro militarmente ocupado.
3. Princípios Reitores do Artigo 4º
Antes de adentrar na análise dos incisos e alíneas do artigo 4º, é fundamental destacar os princípios que orientam sua redação:
3.1. Soberania Nacional
O artigo 4º tem como um de seus pilares a defesa da soberania do Brasil, permitindo a aplicação das normas processuais militares em situações que envolvam a proteção das instituições militares e da segurança nacional, mesmo além das fronteiras do país.
3.2. Respeito ao Direito Internacional
O caput do artigo ressalva, de forma expressa, a primazia das convenções, tratados e regras de direito internacional, o que demonstra a preocupação do legislador em harmonizar a legislação interna com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
3.3. Universalidade e Extraterritorialidade
O dispositivo adota a ideia de aplicação universal e extraterritorial das normas processuais militares, especialmente quando estão em jogo interesses fundamentais do Estado brasileiro.
4. Aplicação do CPPM em Tempo de Paz

O artigo 4º, inciso I, detalha as hipóteses de incidência do CPPM em tempo de paz, abrangendo uma série de situações que vão muito além do território nacional.
4.1. Todo o Território Nacional (Alínea “a”)
O CPPM se aplica, em tempo de paz, a todos os crimes militares cometidos dentro do território brasileiro, independentemente do local específico. Isso inclui quartéis, bases militares, vias públicas, áreas urbanas e rurais, desde que o fato seja tipificado como crime militar.
4.2. Fora do Território Nacional (Alínea “b”)
A alínea “b” amplia o alcance do CPPM para além das fronteiras nacionais, prevendo sua aplicação em casos de crimes cometidos fora do Brasil ou em lugares de extraterritorialidade brasileira (como embaixadas, consulados e bases militares no exterior), desde que tais crimes atentem contra as instituições militares ou a segurança nacional. Uma inovação importante é a possibilidade de aplicação do CPPM mesmo que o agente já tenha sido processado ou julgado pela justiça estrangeira. Trata-se de uma expressão do princípio da proteção dos interesses fundamentais do Estado, que prevalecem sobre eventuais decisões estrangeiras, respeitados os tratados internacionais.
4.3. Administração ou Vigilância Militar Brasileira (Alínea “c”)
A alínea “c” abrange situações em que o Brasil exerce administração ou vigilância sobre determinada área fora do território nacional, seja em missões de paz, operações conjuntas ou outras atividades internacionais. Também se aplica quando há ligação com força militar estrangeira em missão internacional ou extraterritorial. Isso é especialmente relevante em missões de paz da ONU ou em operações conjuntas de defesa regional.
4.4. Embarcações e Aeronaves sob Comando Militar (Alínea “d”)
A alínea “d” do artigo 4º, inciso I, determina que as normas do CPPM se aplicam a bordo de navios, embarcações e aeronaves, onde quer que se encontrem, ainda que sejam de propriedade privada, desde que estejam sob comando militar ou estejam sendo utilizadas ou ocupadas por ordem de autoridade militar competente.
Essa previsão é fundamental para garantir a disciplina e a hierarquia militar em meios de transporte que, embora possam ser civis, estejam em missão ou sob controle das Forças Armadas, evitando lacunas jurídicas e conflitos de competência. Por exemplo, em operações de transporte de tropas, missões de resgate ou treinamentos, qualquer infração penal militar cometida a bordo será processada conforme o CPPM, independentemente do local em que o veículo se encontre, inclusive em águas ou espaço internacional.
4.5. Aeronaves e Navios Estrangeiros sob Administração Militar (Alínea “e”)
A alínea “e” amplia ainda mais o espectro de aplicação do CPPM, permitindo sua incidência a bordo de aeronaves e navios estrangeiros, desde que estejam em lugar sujeito à administração militar brasileira e a infração atente contra as instituições militares ou a segurança nacional.
Esse dispositivo busca proteger o interesse nacional e a integridade das Forças Armadas mesmo em situações de cooperação internacional, treinamento conjunto ou presença de forças estrangeiras em território sob jurisdição militar brasileira.
5. Aplicação do CPPM em Tempo de Guerra
O inciso II do artigo 4º trata da aplicação do CPPM em tempo de guerra, ampliando ainda mais sua abrangência, diante da excepcionalidade do momento e da necessidade de proteção reforçada das instituições militares e da segurança nacional.
5.1. Hipóteses de Incidência em Tempo de Guerra
O artigo prevê que, durante o estado de guerra:
a) O CPPM se aplica a todos os casos já previstos para tempo de paz, mantendo a proteção das instituições militares em qualquer circunstância;
b) Estende-se a aplicação do CPPM a zonas, espaços ou lugares onde se realizem operações de força militar brasileira, ou de força estrangeira aliada, ou cuja defesa, proteção ou vigilância interesse à segurança nacional ou ao êxito das operações.
Essa hipótese é especialmente relevante em conflitos armados internacionais, missões de coalizão ou operações conjuntas, garantindo que delitos militares sejam processados sob a ótica do direito militar brasileiro, mesmo em áreas de operações fora do território nacional.
c) Aplica-se ainda em território estrangeiro militarmente ocupado, ou seja, áreas sob controle das forças armadas brasileiras durante operações militares, onde a ordem e a disciplina devem ser mantidas segundo os padrões nacionais.
5.2. Justificativa para a Ampliação em Tempo de Guerra
A ampliação da aplicação do CPPM em tempo de guerra reflete a necessidade de assegurar a ordem, a disciplina e a efetividade das operações militares em situações de crise, quando a atuação das Forças Armadas extrapola o território nacional e envolve interesses estratégicos do Estado brasileiro e de seus aliados.
Além disso, garante segurança jurídica aos militares, que saberão qual legislação processual será aplicada em caso de eventual infração penal, mesmo em ambientes hostis e de incerteza.
6. Relação com o Direito Internacional
O artigo 4º inicia com a ressalva: “Sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional…”.
Isso significa que, caso haja acordo internacional ratificado pelo Brasil que discipline de forma diversa a persecução penal de crimes militares em determinadas situações (por exemplo, em missões de paz da ONU ou tratados de extradição), essas normas prevalecerão em relação ao CPPM.
Essa abertura dialoga com o princípio da cooperação internacional e com a necessidade de harmonização entre o direito interno e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, evitando conflitos de competência, de jurisdição ou de tratamento processual a militares brasileiros e estrangeiros.
7. Aspectos Práticos da Aplicação do Artigo 4º
7.1. Missões de Paz e Operações Internacionais
O Brasil tem tradição de participação em missões de paz (como no Haiti, Líbano, Timor Leste), em que militares brasileiros atuam em território estrangeiro sob comando nacional ou conjunto. Nesses casos, o artigo 4º assegura que eventuais crimes militares cometidos por brasileiros sejam processados segundo o CPPM, salvo disposição diversa em tratados internacionais.
7.2. Crimes em Embaixadas, Consulados e Bases
Em locais de extraterritorialidade brasileira, como embaixadas, consulados e bases militares, o artigo 4º também garante a aplicação do CPPM, protegendo a ordem militar e a segurança nacional mesmo fora do país.
7.3. Embarcações e Aeronaves em Águas ou Espaço Internacional
Navios e aeronaves militares (ou civis sob comando militar) em águas internacionais, em missão oficial ou em trânsito, estão sob a jurisdição do CPPM, o que é essencial para evitar zonas de impunidade e garantir a aplicação uniforme das normas militares.
7.4. Cooperação com Forças Estrangeiras
O dispositivo também disciplina situações de cooperação com forças estrangeiras, seja em território nacional ou em missão internacional, assegurando que crimes que atentem contra as instituições militares brasileiras ou a segurança nacional possam ser processados segundo o CPPM, ainda que o agente seja estrangeiro ou a embarcação/aeronave seja de outro país.
8. Importância Doutrinária e Jurisprudencial do Artigo 4º

8.1. Doutrina
A doutrina reconhece no artigo 4º um dos pilares da jurisdição militar brasileira, pois delimita de forma clara e objetiva os casos em que o processo penal militar deve ser aplicado, evitando dúvidas e conflitos de competência com a justiça comum ou internacional.
Autores como Eugênio Pacelli e Guilherme Nucci ressaltam a importância do dispositivo para a segurança jurídica dos militares e para a proteção dos interesses nacionais em situações de excepcionalidade, como missões internacionais e conflitos armados.
8.2. Jurisprudência
A jurisprudência do Superior Tribunal Militar (STM) e do Supremo Tribunal Federal (STF) tem reiteradamente reconhecido a aplicação do CPPM nos casos previstos no artigo 4º, inclusive em situações de extraterritorialidade e em missões de paz, respeitando sempre os tratados internacionais e a legislação dos países anfitriões.
9. Considerações Finais: Relevância Atual do Artigo 4º do CPPM
O artigo 4º do Código de Processo Penal Militar é peça-chave para a compreensão do alcance da jurisdição penal militar brasileira. Sua redação clara e detalhada proporciona segurança jurídica tanto para os membros das Forças Armadas quanto para a sociedade, estabelecendo balizas objetivas sobre onde e quando as normas processuais militares devem incidir.
Sua importância se revela especialmente em tempos de globalização e crescente atuação das Forças Armadas em missões internacionais, operações conjuntas e ações de defesa nacional que extrapolam as fronteiras do país. O artigo 4º garante que a disciplina, a hierarquia e os valores militares sejam resguardados, independentemente do local de ocorrência do fato, protegendo a soberania nacional e a integridade das instituições militares.
Além disso, ao subordinar sua aplicação à prevalência de tratados e convenções internacionais, o dispositivo demonstra respeito ao direito internacional e à cooperação entre Estados, evitando conflitos de jurisdição e promovendo a integração do Brasil no cenário global.
A jurisprudência tem confirmado a eficácia do artigo 4º, reconhecendo sua aplicação em casos concretos de crimes militares cometidos fora do território nacional e em situações excepcionais, sempre com observância dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Diante disso, pode-se afirmar que o artigo 4º do CPPM é um instrumento fundamental para a defesa dos interesses nacionais, para o funcionamento regular da Justiça Militar e para a proteção dos direitos e deveres dos militares brasileiros, consolidando-se como um dos dispositivos mais relevantes do ordenamento jurídico militar pátrio.
Perguntas Frequentes (FAQ) sobre o Artigo 4º do CPPM
1. O que é o artigo 4º do Código de Processo Penal Militar?
O artigo 4º do CPPM define as situações e os lugares em que as normas processuais militares devem ser aplicadas, tanto em tempo de paz quanto em tempo de guerra, abrangendo o território nacional, áreas de extraterritorialidade, missões internacionais, embarcações e aeronaves sob comando militar e, em certas condições, até navios e aeronaves estrangeiros.
2. O artigo 4º permite a aplicação do CPPM fora do Brasil?
Sim. O artigo 4º prevê expressamente a aplicação do CPPM fora do território nacional, em locais de extraterritorialidade brasileira, em zonas sob administração ou vigilância militar brasileira, em missões internacionais, e em embarcações e aeronaves sob comando militar, entre outros casos.
3. O que acontece se um militar brasileiro cometer crime militar em missão de paz no exterior?
Nessa situação, o militar estará sujeito ao CPPM, conforme previsto no artigo 4º, salvo se houver tratado internacional dispondo de forma diversa.
4. Em caso de conflito entre o CPPM e um tratado internacional, qual prevalece?
Prevalece o tratado internacional, pois o caput do artigo 4º ressalva a primazia das convenções e tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
5. O CPPM se aplica a civis?
Em regra, o CPPM se aplica a militares. No entanto, em algumas situações excepcionais previstas em lei (como em tempo de guerra), civis podem ser submetidos à jurisdição militar, sempre observados os limites constitucionais e legais.
6. O artigo 4º se aplica a crimes comuns cometidos por militares?
Não. O artigo 4º trata da aplicação do CPPM a crimes militares, definidos pelo Código Penal Militar. Crimes comuns cometidos por militares, fora das hipóteses previstas na legislação militar, são processados pela justiça comum.
7. O artigo 4º do CPPM está em conformidade com a Constituição Federal?
Sim, o artigo 4º está em conformidade com a Constituição, que prevê a existência de uma Justiça Militar e a competência para processar crimes militares, respeitando tratados internacionais e os direitos fundamentais.
8. O artigo 4º permite a dupla persecução penal (bis in idem)?
O artigo 4º, alínea “b”, prevê a possibilidade de o militar ser processado no Brasil mesmo que já tenha sido julgado no exterior, quando o crime atentar contra as instituições militares ou a segurança nacional, respeitados os tratados internacionais e as garantias constitucionais.
9. Em tempo de guerra, o CPPM pode ser aplicado a territórios estrangeiros ocupados?
Sim. O artigo 4º, inciso II, alínea “c”, prevê expressamente a aplicação do CPPM em território estrangeiro militarmente ocupado.
10. Qual a importância prática do artigo 4º para as Forças Armadas?
O artigo 4º garante a manutenção da disciplina, da hierarquia e da ordem militar em qualquer situação de atuação das Forças Armadas, seja no Brasil ou no exterior, em tempos de paz ou de guerra, protegendo os interesses nacionais e a integridade das instituições militares.
Conclusão
O artigo 4º do Código de Processo Penal Militar representa um dos pilares da jurisdição penal militar brasileira, estabelecendo critérios claros e objetivos para a aplicação das normas processuais militares em diversas situações, dentro e fora do território nacional, em tempos de paz e de guerra. Ao harmonizar o direito interno com o direito internacional, o dispositivo assegura a proteção das instituições militares, da segurança nacional e da soberania do Brasil, sendo indispensável para o funcionamento regular e eficiente da Justiça Militar. Sua compreensão é fundamental para operadores do direito, militares e estudiosos das ciências jurídicas, especialmente diante dos desafios contemporâneos impostos pela atuação global das Forças Armadas brasileiras.