Introdução
O Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, instituído pelo Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, representa um marco fundamental para a organização do sistema processual penal no Brasil. Dentro deste extenso diploma legal, o artigo 4º ocupa posição estratégica ao estabelecer as bases para a atuação da polícia judiciária no país. De acordo com sua redação, “[a] polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria](https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10679017/artigo-4-do-decreto-lei-n-3689-de-03-de-outubro-de-1941)”.
Aparentemente simples, este dispositivo encerra em si complexidades e implicações de grande relevância para todo o sistema de justiça criminal. Este artigo propõe-se a examinar minuciosamente o significado, o alcance e as implicações do artigo 4º do CPP, bem como sua importância no contexto da persecução penal brasileira. Abordaremos sua evolução histórica, suas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, além de discutir os desafios contemporâneos enfrentados pela polícia judiciária no cumprimento de sua missão institucional.
O Contexto Histórico do Artigo 4º do CPP
Para compreender adequadamente a importância do artigo 4º do CPP, é essencial contextualizá-lo historicamente. O Decreto-Lei nº 3.689 foi promulgado em 3 de outubro de 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, em um momento histórico marcado pelo autoritarismo. Apesar de suas origens em um período não democrático, o CPP permanece como o principal diploma processual penal brasileiro, tendo sofrido inúmeras alterações ao longo de mais de oito décadas de vigência.
Antes de 1941, a legislação processual penal no Brasil era fragmentada, com diferentes códigos estaduais regulando a matéria. A unificação da legislação processual penal representou um avanço significativo para a uniformização da aplicação da lei criminal em todo o território nacional. Nesse contexto, a definição clara das atribuições da polícia judiciária no artigo 4º foi fundamental para estabelecer os parâmetros da fase pré-processual da persecução penal.
A concepção da polícia judiciária como órgão responsável pela apuração das infrações penais reflete uma tradição jurídica de influência europeia continental, especialmente francesa e italiana, onde a fase de investigação é bastante valorizada. Diferentemente do sistema anglo-saxônico, que privilegia a fase processual em detrimento da investigativa, o sistema brasileiro atribui considerável importância à fase preliminar, conduzida precisamente pela polícia judiciária.
Conceito e Natureza Jurídica da Polícia Judiciária

A expressão “polícia judiciária” utilizada pelo legislador no artigo 4º do CPP merece detida análise. Em sentido amplo, a polícia, enquanto instituição estatal, divide-se tradicionalmente em duas vertentes principais: a polícia administrativa, de caráter preventivo, e a polícia judiciária, de caráter repressivo. Enquanto a primeira atua preventivamente para evitar a ocorrência de crimes, a segunda atua após a prática delitiva, com o objetivo de apurar a materialidade e autoria das infrações penais.
A polícia judiciária, portanto, possui natureza jurídica de órgão auxiliar da justiça criminal, atuando na chamada fase pré-processual ou investigativa. Sua função essencial, como define o artigo 4º, é a apuração das infrações penais e de sua autoria, atividade que se materializa principalmente por meio do inquérito policial, disciplinado nos artigos seguintes do CPP.
No sistema constitucional brasileiro pós-1988, a polícia judiciária é exercida, no âmbito federal, pela Polícia Federal, e no âmbito estadual, pelas Polícias Civis. Essa repartição de competências decorre do artigo 144 da Constituição Federal, que organiza a segurança pública no país. Assim, o artigo 4º do CPP deve ser lido e interpretado à luz das disposições constitucionais supervenientes.
A natureza da atividade da polícia judiciária é administrativa, embora com finalidade judiciária. Isso significa que, embora suas atividades estejam direcionadas ao futuro processo penal, a autoridade policial não exerce atividade jurisdicional, reservada exclusivamente ao Poder Judiciário. Esta distinção é fundamental para compreender os limites de atuação da autoridade policial.
A Circunscrição Territorial como Limite de Atuação
O artigo 4º do CPP estabelece expressamente que a polícia judiciária será exercida “no território de suas respectivas circunscrições”. Esta limitação territorial é de suma importância para a organização da atividade policial e para a própria segurança jurídica.
A circunscrição policial refere-se à divisão administrativa do território para fins de atuação das autoridades policiais. Cada delegacia de polícia possui uma área territorial delimitada onde, em regra, deve exercer suas atribuições. Esta divisão visaracionalizar e otimizar o trabalho policial, permitindo maior eficiência na apuração dos crimes.
Entretanto, é importante ressaltar que a limitação territorial prevista no artigo 4º não é absoluta. Em situações excepcionais, como nos casos de urgência ou quando se trata de crime permanente, a jurisprudência tem admitido a atuação da autoridade policial fora de sua circunscrição. Além disso, existem delegacias especializadas cuja competência é definida pela natureza do crime, e não pelo território, como as delegacias de homicídios ou de crimes contra a mulher.
A questão da circunscrição territorial também se relaciona com as regras de competência jurisdicional. Em regra, o inquérito policial deve ser conduzido pela autoridade policial da circunscrição onde o crime foi praticado, em consonância com o princípio do local do crime que orienta a fixação da competência judicial, previsto no artigo 70 do CPP.
A Finalidade da Polícia Judiciária: Apuração das Infrações Penais e sua Autoria
O núcleo essencial do artigo 4º do CPP reside na definição da finalidade da polícia judiciária: “a apuração das infrações penais e da sua autoria”. Esta formulação aparentemente simples encerra toda a razão de ser da instituição policial judiciária e merece detalhada análise.
A “apuração das infrações penais” significa a investigação dos fatos que, em tese, constituem crime ou contravenção penal. Esta atividade envolve a coleta de evidências sobre a materialidade do delito, ou seja, a comprovação de que o fato criminoso efetivamente ocorreu. Já a apuração “da sua autoria” refere-se à identificação da pessoa ou pessoas responsáveis pela prática da infração penal.
Para cumprir esta finalidade, a polícia judiciária dispõe de diversos instrumentos investigativos, sendo o principal deles o inquérito policial, procedimento administrativo preparatório que visa reunir elementos informativos para subsidiar a atuação do Ministério Público, titular da ação penal. Além do inquérito, a polícia judiciária pode atuar por meio de termos circunstanciados (nos crimes de menor potencial ofensivo) e outras formas de investigação preliminar.
É importante destacar que a apuração realizada pela polícia judiciária tem caráter preparatório e informativo, não se confundindo com o juízo definitivo sobre o crime e sua autoria, que será realizado pelo Poder Judiciário após o devido processo legal. Os elementos colhidos na fase policial servirão para formar a opinio delicti do Ministério Público, que decidirá sobre o oferecimento da denúncia.
O Artigo 4º e sua Interpretação Sistemática no CPP
O artigo 4º do CPP não pode ser interpretado isoladamente. Sua compreensão adequada exige uma interpretação sistemática, considerando os dispositivos que o complementam, especialmente seus parágrafos e artigos subsequentes.
O parágrafo único do artigo 4º, por exemplo, estabelece que “[a] competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. Esta ressalva é crucial, pois reconhece que, além da polícia judiciária tradicional, outras autoridades administrativas podem, excepcionalmente, exercer funções investigativas.
É o caso, por exemplo, das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), que têm poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais, conforme o artigo 58, § 3º, da Constituição Federal. Também se enquadram nessa hipótese as investigações realizadas por autoridades administrativas em procedimentos disciplinares, como aquelas conduzidas pelas corregedorias das polícias ou pelos órgãos de controle interno da Administração Pública.
Além disso, o artigo 4º deve ser lido em conjunto com os artigos 5º a 23 do CPP, que regulamentam o inquérito policial, principal instrumento da polícia judiciária para cumprir sua finalidade de apuração das infrações penais. Estes dispositivos estabelecem os procedimentos, prazos e formalidades que devem ser observados pela autoridade policial no exercício de suas funções.
A Polícia Judiciária na Estrutura Constitucional Brasileira
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a interpretação do artigo 4º do CPP ganhou novos contornos. O artigo 144 da Carta Magna estabeleceu a estrutura da segurança pública no Brasil, definindo expressamente os órgãos responsáveis por exercer a função de polícia judiciária.
No âmbito federal, o § 1º, inciso IV, do artigo 144 atribui à Polícia Federal a função de “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”. Já no âmbito estadual, o § 4º do mesmo artigo estabelece que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.
Assim, a previsão genérica do artigo 4º do CPP foi especificada pela Constituição, que definiu com clareza quais são as “autoridades policiais” competentes para exercer as funções de polícia judiciária. Esta definição constitucional é fundamental para a interpretação adequada do artigo 4º do CPP, estabelecendo precisamente quem são os destinatários da norma.
É importante notar que a Constituição conferiu à Polícia Federal a exclusividade das funções de polícia judiciária da União, o que significa que nenhum outro órgão pode exercer essa função no âmbito federal. Já em relação às polícias civis estaduais, a exclusividade é mitigada pela expressão “ressalvada a competência da União”, indicando que há uma repartição de competências baseada na natureza da infração penal.
Esta estruturação constitucional reforça a importância do artigo 4º do CPP como norma fundamental para a definição das atribuições da polícia judiciária, agora com status e proteção constitucionais. A elevação da polícia judiciária ao patamar constitucional demonstra o reconhecimento de sua essencialidade para o funcionamento adequado do sistema de justiça criminal.
O Delegado de Polícia como Autoridade Policial
O artigo 4º do CPP menciona genericamente “autoridades policiais” como responsáveis pelo exercício da polícia judiciária. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, trouxe maior precisão a este conceito ao se referir expressamente aos “delegados de polícia de carreira” como dirigentes das polícias civis.
O delegado de polícia, portanto, é a autoridade policial por excelência, incumbida de presidir o inquérito policial e exercer as demais funções de polícia judiciária. Trata-se de um cargo público privativo de bacharel em Direito, cuja investidura depende de aprovação em concurso público, garantindo-se assim a qualificação técnica necessária para o desempenho de tão relevante função.
A Lei nº 12.830/2013 veio reforçar esta concepção ao dispor especificamente sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Em seu artigo 2º, estabelece que “[a]s funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”. Além disso, reconhece expressamente que o delegado de polícia é a autoridade competente para presidir o inquérito policial.
Esta valorização legislativa do papel do delegado de polícia como autoridade policial mencionada no artigo 4º do CPP é um reconhecimento da importância e complexidade de suas atribuições. A natureza jurídica de suas funções evidencia que não se trata de mera atividade administrativa, mas de atividade que demanda conhecimento técnico-jurídico aprofundado, capaz de garantir a legalidade e eficácia da investigação criminal.
O Princípio da Oficialidade e o Artigo 4º do CPP
O artigo 4º do CPP consagra, implicitamente, o princípio da oficialidade na investigação criminal brasileira. Este princípio estabelece que a apuração das infrações penais é uma função primordial do Estado, a ser exercida por seus órgãos oficiais independentemente da vontade das partes envolvidas.
Ao atribuir à polícia judiciária a função de apurar as infrações penais e sua autoria, o legislador evidenciou sua opção por um sistema em que a investigação criminal é conduzida por órgãos públicos especializados, afastando-se de modelos privatísticos de investigação. Esta opção está alinhada com a natureza pública do direito penal e com o monopólio estatal da persecução criminal.
O princípio da oficialidade desdobra-se em outros subprincípios, como o da obrigatoriedade, segundo o qual a autoridade policial, ao tomar conhecimento da prática de uma infração penal, tem o dever legal de instaurar a investigação, ressalvadas as hipóteses legais. Este dever está expressamente previsto no artigo 5º do CPP, que complementa a disposição do artigo 4º.
A compreensão do princípio da oficialidade é fundamental para entender a ratio legis do artigo 4º do CPP. Ao centralizar na autoridade policial a função investigativa, o legislador buscou garantir maior profissionalismo, imparcialidade e eficiência na apuração dos crimes, valores que poderiam ser comprometidos em um sistema de investigação privada.
O Papel da Polícia Judiciária no Sistema Acusatório
O sistema processual penal brasileiro, especialmente após a Constituição de 1988, assumiu feições predominantemente acusatórias, caracterizadas pela separação das funções de acusar, defender e julgar. Neste contexto, a compreensão do papel da polícia judiciária, conforme definido pelo artigo 4º do CPP, ganha novos contornos.
A polícia judiciária, ao exercer sua função de apuração das infrações penais, atua como órgão preparatório da acusação, fornecendo subsídios para que o Ministério Público possa formar sua opinio delicti. Contudo, embora sua atividade esteja funcionalmente vinculada à acusação, a polícia judiciária deve pautar-se pela imparcialidade na colheita de provas, apurando tanto os elementos que possam incriminar o investigado quanto aqueles que possam inocentá-lo.
Esteposicionamento da polícia judiciária no sistema acusatório é fundamental para garantir o equilíbrio entre a eficiência da persecução penal e o respeito aos direitos fundamentais do investigado. O artigo 4º do CPP, ao definir a finalidade da polícia judiciária como a “apuração das infrações penais e da sua autoria”, não autoriza uma investigação a qualquer custo, mas uma apuração que se desenvolva nos estritos limites da legalidade.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem reforçado esta compreensão, ao estabelecer diversos limites à atuação policial e reconhecer a necessidade de controle externo da atividade investigativa. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem decidido reiteradamente que as provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis no processo penal, o que impõe à autoridade policial o dever de respeitar as garantias constitucionais durante a investigação.
Assim, embora o artigo 4º do CPP tenha sido redigido em um contexto histórico anterior à Constituição de 1988, sua interpretação contemporânea deve adequar-se ao modelo acusatório e garantista adotado pela Carta Magna, reconhecendo a importância da polícia judiciária sem descuidar dos limites impostos pelo Estado Democrático de Direito.
A Polícia Judiciária e o Ministério Público: Uma Relação Funcional

Um dos aspectos mais relevantes para a compreensão do alcance do artigo 4º do CPP diz respeito à relação entre a polícia judiciária e o Ministério Público. Sendo a polícia judiciária responsável pela apuração das infrações penais e o Ministério Público o titular da ação penal pública, estabelece-se entre estes órgãos uma relação funcional de grande relevância para o sistema de justiça criminal.
A Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso VII, atribui ao Ministério Público a função de exercer o controle externo da atividade policial. Esta previsão constitucional complementa o disposto no artigo 4º do CPP, estabelecendo um mecanismo de supervisão sobre a atuação da polícia judiciária.
Além disso, o artigo 129, inciso VIII, da Constituição Federal confere ao Ministério Público o poder de “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”. Esta prerrogativa ministerial influencia diretamente o exercício da função de polícia judiciária, criando uma espécie de subordinação funcional (mas não hierárquica) da autoridade policial ao Ministério Público no que tange à investigação criminal.
A relação entre estes órgãos nem sempre é harmoniosa, havendo debates sobre os limites da ingerência do Ministério Público na atividade policial. Contudo, é importante ressaltar que ambos os órgãos devem atuar de forma complementar, visando o mesmo objetivo final: a realização da justiça através da apuração adequada dos crimes e da responsabilização de seus autores, sempre com respeito aos direitos fundamentais.
As Limitações do Artigo 4º e a Questão das Investigações Diretas pelo Ministério Público
Uma das questões mais controvertidas relacionadas ao artigo 4º do CPP diz respeito à possibilidade de investigação criminal direta pelo Ministério Público. O referido artigo, ao atribuir à polícia judiciária a função de apurar as infrações penais, estabeleceria um monopólio da atividade investigativa por parte das autoridades policiais?
Esta questão foi objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial por anos, culminando no julgamento do RE 593.727/MG pelo Supremo Tribunal Federal em 2015. Neste julgamento histórico, o STF reconheceu legitimidade ao Ministério Público para conduzir investigações criminais, entendendo que o artigo 4º do CPP não estabelece uma exclusividade absoluta da polícia judiciária na apuração de infrações penais.
Segundo o entendimento firmado pelo STF, o artigo 129, incisos I, VI, VII, VIII e IX, da Constituição Federal, que define as funções institucionais do Ministério Público, fundamenta o poder investigatório do órgão ministerial. Assim, a interpretação do artigo 4º do CPP deve ser compatibilizada com as disposições constitucionais supervenientes, não se podendo extrair dele uma vedação à investigação direta pelo Ministério Público.
Este precedente é de suma importância para a compreensão contemporânea do alcance do artigo 4º do CPP, pois reconhece que, embora a função precípua de investigação criminal seja da polícia judiciária, esta função não é exclusiva, podendo ser exercida, em caráter excepcional e subsidiário, pelo Ministério Público.
A Dimensão Garantística do Artigo 4º do CPP
Embora o artigo 4º do CPP tenha um caráter predominantemente organizacional, definindo competências e atribuições, é possível extrair dele também uma dimensão garantística para o cidadão investigado. Ao estabelecer que a apuração das infrações penais cabe à polícia judiciária, o dispositivo cria uma reserva de competência que funciona como garantia contra investigações arbitrárias.
A definição clara das autoridades competentes para investigar crimes e da finalidade específica dessa investigação (apuração das infrações penais e sua autoria) estabelece um marco normativo que limita a atuação estatal. Qualquer investigação criminal deve observar esses parâmetros legais, sob pena de invalidade.
Além disso, a exigência de que ainvestigação seja conduzida pela autoridade policial da respectiva circunscrição territorial atende ao princípio do juiz natural, em sua vertente administrativa, garantindo previsibilidade e imparcialidade na condução da apuração criminal. Esta previsão evita a criação de autoridades de exceção ou a designação casuística de delegados para investigar determinados casos, o que poderia comprometer a imparcialidade da investigação.
Outra garantia que pode ser extraída do artigo 4º é a profissionalização da investigação criminal. Ao atribuir a função investigativa à polícia judiciária, composta por profissionais especializados e com formação específica, o legislador buscou assegurar que a apuração dos crimes fosse realizada com técnica e rigor científico, e não de forma amadora ou passional.
Assim, embora o artigo 4º do CPP seja anterior à Constituição de 1988 e tenha sido concebido em um contexto histórico diferente, sua interpretação contemporânea permite identificar nele uma dimensão garantística que se harmoniza com os princípios do Estado Democrático de Direito e com os direitos fundamentais consagrados na Carta Magna.
Desafios Contemporâneos à Aplicação do Artigo 4º do CPP
Apesar de sua longevidade e importância fundamental para o sistema processual penal brasileiro, o artigo 4º do CPP enfrenta diversos desafios contemporâneos que testam sua eficácia e atualidade. Estes desafios decorrem tanto de transformações sociais e tecnológicas quanto de evoluções no próprio pensamento jurídico-penal.
Um dos principais desafios é a criminalidade transnacional e cibernética, que desafia o conceito tradicional de circunscrição territorial previsto no artigo 4º. Crimes cometidos na internet, por exemplo, podem ter autores, vítimas e efeitos em diferentes localidades, tornando complexa a definição da autoridade policial competente para sua investigação.
Outro desafio significativo é a crescente judicialização da investigação criminal. Com a evolução da jurisprudência, diversas medidas investigativas passaram a depender de autorização judicial prévia, como interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal, busca e apreensão domiciliar, entre outras. Esta realidade tem aproximado a fase investigativa da fase processual, exigindo maior interação entre a polícia judiciária e o Poder Judiciário.
A limitação de recursos materiais e humanos também representa um obstáculo à plena efetividade do artigo 4º do CPP. Em muitas localidades do Brasil, especialmente em áreas mais afastadas dos grandes centros urbanos, a estrutura da polícia judiciária é precária, com número insuficiente de delegados, investigadores, peritos e equipamentos. Esta realidade compromete a capacidade da polícia judiciária de cumprir adequadamente sua missão de apurar as infrações penais.
Por fim, a complexidade crescente de determinados crimes, como os econômicos, ambientais e de corrupção, tem levado à criação de forças-tarefas e grupos especializados de investigação, muitas vezes com participação de diferentes órgãos além da polícia judiciária. Esta realidade desafia a concepção tradicional do artigo 4º, exigindo uma interpretação mais flexível e adaptável às necessidades contemporâneas da investigação criminal.
Propostas de Atualização e Aperfeiçoamento do Artigo 4º do CPP
Diante dos desafios contemporâneos enfrentados pela aplicação do artigo 4º do CPP, diversas propostas de atualização e aperfeiçoamento têm sido discutidas tanto no âmbito acadêmico quanto legislativo. Estas propostas visam adaptar o dispositivo às novas realidades da criminalidade e da investigação criminal, sem perder de vista sua importância fundamental para o sistema processual penal.
Uma das propostas mais discutidas é a atualização da redação do artigo para contemplar expressamente as novas formas de criminalidade e os desafios territoriais da investigação. Seria possível, por exemplo, incluir disposições específicas sobre a competência para investigar crimes cibernéticos ou transnacionais, estabelecendo critérios claros para definir a autoridade policial responsável.
Outra proposta relevante é a positivação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de investigação criminal direta pelo Ministério Público. Embora esta questão esteja pacificada na jurisprudência, sua incorporação expressa ao texto legal traria maior segurança jurídica e clareza normativa.
Também se discute a necessidade de regulamentação mais detalhada da relação entre a polícia judiciária e outros órgãos que exercem atividades investigativas, como o Ministério Público, as Comissões Parlamentares de Inquérito e as agências reguladoras. Esta regulamentação poderia estabelecer mecanismos de cooperação e compartilhamento de informações, evitando conflitos de atribuições e duplicidade de esforços.
Por fim, há propostas no sentido de fortalecer institucionalmente a polícia judiciária, garantindo-lhe autonomia administrativa e financeira, bem como recursos adequados para o desempenho de suas funções. Esta autonomia seria fundamental para assegurar a imparcialidade e eficiência da investigação criminal, permitindo que a polícia judiciária cumpra adequadamente a missão que lhe foi atribuída pelo artigo 4º do CPP.
Conclusão

O artigo 4º do Código de Processo Penal, não obstante sua aparente simplicidade, encerra complexidades e implicações que o tornam um dos dispositivos mais importantes para a compreensão do sistema processual penal brasileiro. Ao definir a competência e a finalidade da polícia judiciária, este artigo estabelece as bases sobre as quais se desenvolve toda a fase pré-processual da persecução penal.
A evolução interpretativa deste dispositivo, especialmente após a Constituição de 1988, demonstra sua capacidade de adaptação às transformações sociais, políticas e jurídicas do país. De uma concepção inicialmente autoritária e centralizada, própria do contexto histórico de sua elaboração, o artigo 4º passou a ser compreendido à luz dos princípios democráticos e garantistas que fundamentam o atual Estado Brasileiro.
Os desafios contemporâneos à aplicação do artigo 4º, como a criminalidade transnacional e cibernética, a judicialização da investigação e a limitação de recursos, exigem uma constante reflexão sobre seu alcance e eficácia. Contudo, mesmo diante destes desafios, o dispositivo mantém sua relevância como norma estruturante do sistema de investigação criminal brasileiro.
As propostas de atualização e aperfeiçoamento do artigo 4º do CPP não visam desconstruir sua essência, mas adaptá-lo às novas realidades e necessidades da sociedade brasileira. A modernização deste dispositivo deve preservar seu núcleo fundamental – a atribuição da função investigativa à polícia judiciária – ao mesmo tempo em que incorpora as evoluções jurisprudenciais e doutrinária sobre o tema.
Em síntese, o artigo 4º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”, continua a ser uma pedra angular do sistema processual penal brasileiro, conciliando tradição e modernidade, eficiência investigativa e garantias fundamentais, na busca constante por uma justiça criminal mais efetiva e democrática.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 4º do CPP
1. O que é a polícia judiciária mencionada no artigo 4º do CPP?
A polícia judiciária é a instituição responsável pela apuração de infrações penais e sua autoria. No Brasil, conforme a Constituição Federal, esta função é exercida pela Polícia Federal, no âmbito federal, e pelas Polícias Civis, no âmbito estadual.
2. Quem são as “autoridades policiais” mencionadas no artigo 4º?
As autoridades policiais referidas no artigo são os delegados de polícia, profissionais de carreira com formação jurídica, aprovados em concurso público, que presidem o inquérito policial e as demais investigações criminais.
3. O que significa “circunscrição” no contexto do artigo 4º?
Circunscrição refere-se à delimitação territorial da competência de cada autoridade policial. As delegacias de polícia têm sua área de atuação definida, geralmente abrangendo determinados bairros, distritos ou municípios.
4. A polícia judiciária tem exclusividade na investigação criminal?
Não. Embora o artigo 4º atribua à polícia judiciária a função de apurar infrações penais, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que outros órgãos podem realizar investigações criminais, como o Ministério Público, em caráter excepcional.
5. Qual a diferença entre polícia judiciária e polícia administrativa?
A polícia judiciária atua após a ocorrência do crime, investigando-o e reunindo provas para subsidiar o processo penal. Já a polícia administrativa tem função preventiva, atuando antes da ocorrência do crime, para evitá-lo.
6. Como o artigo 4º se relaciona com o sistema acusatório?
O artigo 4º insere-se no sistema acusatório ao estabelecer uma separação clara entre as funções de investigar (polícia judiciária), acusar (Ministério Público) e julgar (Poder Judiciário), contribuindo para a imparcialidade do processo penal.
7. O artigo 4º do CPP foi recepcionado pela Constituição de 1988?
Sim, o artigo 4º foi recepcionado pela Constituição de 1988, que inclusive reforçou o papel da polícia judiciária ao dedicar artigos específicos (art. 144) para tratar das polícias federal e civil.
8. Quais são os limites da atuação da polícia judiciária?
A polícia judiciária deve atuar dentro dos limites constitucionais e legais, respeitando os direitos fundamentais dos investigados. Medidas invasivas como buscas domiciliares, interceptações telefônicas e quebras de sigilo dependem de autorização judicial.
9. Como funciona o controle externo da atividade policial?
O controle externo da atividade policial é exercido pelo Ministério Público, conforme prevê o artigo 129, VII, da Constituição Federal, visando garantir a legalidade e eficiência da investigação criminal.
10. A investigação criminal pode ser conduzida por delegados de outras circunscrições?
Em regra, a investigação deve ser conduzida pelo delegado da circunscrição onde o crime ocorreu. Entretanto, em casos especiais, como crimes complexos ou que envolvam mais de uma localidade, podem ser criadas forças-tarefas ou designados delegados de outras áreas.
11. Como o artigo 4º se aplica aos crimes cibernéticos?
A aplicação do artigo 4º aos crimes cibernéticos é um desafio, pois estes frequentemente transcendem fronteiras territoriais. Geralmente, adota-se o critério do local onde se encontra a vítima ou onde o resultado do crime se manifestou para definir a autoridade competente.