Modelo de um caso concreto
AO DOUTO JUÍZO DA VARA CRIMINAL DA COMARCA xxxxxxxxxxxxx
“Seja quem for o acusado, e por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado, assim entendido e exercido, terá foros de meritório, e se recomendará como útil à sociedade” (Rui Barbosa)
Autos nº xxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxxxx, já qualificada nos autos do processo em epígrafe, que lhe move a Justiça Pública, por seu advogado dativo outrora nomeado (f. 554), vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, com fulcro no artigo 403, § 3º, do Código de Processo Penal, apresentar
MEMORIAIS
pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos:
SÍNTESE PROCESSUAL
Trata-se de ação penal pública incondicionada movida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais em face de R.V.S e S.P.O, dando-os como incursos nos delitos previstos no art. 217-A, § 3º, do Código Penal (por diversas vezes), c/c art. 1º, II, § 3º, primeira parte, e § 4º, II, ambos da Lei 9.455/97 (pelo menos 5 vezes), na forma dos artigos 29 e 69 do Código Penal (em relação a R.V.S) e 217-A, § 3º, do Código Penal (por diversas vezes) c/c art. 1º, II, c/c § 3º, primeira parte, e § 4º, II, ambos da Lei 9455/97 (pelo menos 5 vezes), na forma dos artigos 13, § 2º, a, 29 e 69 do Código Penal (em relação a S.P.O).
A denúncia foi recebida no dia 12 de abril de 2018 (f. 352).
Devidamente citado, o primeiro acusado (R.V.S) apresentou defesa preliminar à f. 374, não arguindo exceções ou levantando questões prejudiciais a análise do mérito.
A Ré S.P.O foi citada à f. 383/384, sendo encartada sua resposta à acusação às ff. 391/392. Não foram levantadas preliminares. Apresentou-se rol de testemunhas.
Às ff. 404/406 fora encartada decisão mantendo o recebimento da denuncia e designando data para AIJ. Na oportunidade, foi indeferido o pedido de revogação da prisão preventiva do primeiro réu, sendo essa mantida por seus próprios fundamentos jurídicos.
Audiência de instrução e julgamento realizada às ff. 445/447. No ato, foram colhidos depoimentos de onze testemunhas arroladas, sendo duas dispensadas pelas partes e duas ouvidas por carta precatória (f.447), bem como foram interrogado os acusados.
Outrossim, fora deferido o pedido de instauração de incidente da insanidade mental do primeiro Réu (R.V.S), razão pela qual foi determinado o desmembramento dos autos, seguindo-se o feito somente com relação à segunda Ré (S.P.O).
Na fase do art. 402, do CPP, encartou-se aos autos a CAC da segunda Ré (f.492) certidão cível negativa (f.491), o ACD complementar (ff.510/511) e a certidão de nascimento da menor (f.513). A defesa nada requereu.
Em alegações finais juntadas às ff. 516/534, o IRMP pugnou pela condenação da acusada S.P.O nas iras dos artigos 217-A, § 3º, do CP (diversas vezes), c.c. art. 1º, I, c.c, § 3º, primeira parte, e § 4º, inciso II, ambos da Lei nº 9455/97 (pelo menos 05 vezes), na forma dos artigos 13, § 2º, a, 29 e 69, do Código Penal.
Despacho nomeando este procurador para patrocinar a defesa da ré (f. 554), sendo o múnus devidamente acatado (f. 554-v).
Às ff. 555/557, foi apresentado pedido de instauração de incidente de insanidade mental da Ré S.P.O, todavia, diferente do que foi entendido com relação ao acusado R.V.S, não fora visualizado indícios “mesmo que ínfimos”, que justificasse a sua instauração, sendo o pedido, portanto, indeferido.
A Defesa foi intimada para apresentar as derradeiras alegações finais.
DOS FATOS
Inicialmente deve-se ressaltar que não houve aditamento da denúncia, sendo que para fins de consagração do “princípio da correlação entre acusação e sentença”, a denúncia oferecida (ff. 01-d/11-d) pelo IRMP narrou os fatos da seguinte forma:
Fato A: “[…] em variadas datas não precisadas dos meses de dezembro de 2017 e dos meses de janeiro e fevereiro de 2018, na Rua Cardolindo Eulálio, nº 128, Casa C, Bairro Alvorada, nesta cidade de Visconde do Rio Branco-MG, os denunciados R. V. S e S. P. O, respectivamente padrasto e mãe da criança K. D. P. E, de 02 anos de idade, em concurso de agentes, submeteram, mediante violência e grave ameaça, a menor em referência, a qual estava sob a guarda e poder dos acusados, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicação de castigo pessoal, causando na vítima lesões corporais de natureza grave;
Fato B: “[…] Consta ainda que, no mesmo período e local, os denunciados R.V.S e S.P.O, livres e conscientemente, em perfeita comunhão de ações e desígnios, praticaram atos libidinosos com a vítima, de apenas 02 anos de idade, causando-lhe, ademais, lesões corporais de natureza grave”.
Desta feita, o Ministério Público pugnou pela condenação da Ré S.P.V nas iras dos artigos 217-A, § 3º, do CP (diversas vezes), c.c. art. 1º, II, c.c, § 3º, primeira parte, e § 4º, inciso II, ambos da Lei nº 9455/97 (pelo menos 05 vezes), na forma dos artigos 13, § 2º, a, 29 e 69, do Código Penal.
3) PRELIMINARMENTE: DA FALTA DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS
Ab initio, questiona-se o critério adotado pelo Ministério Público para quantificar o possível número de condutas eventualmente praticadas pelos Réus.
Para o delito previsto no art. 217-A do CP, informa que os Réus o praticaram por “diversas vezes”.
Já para o artigo 1º, II, c.c § 3º e 4º, II, da Lei 9.455/97, os Réus teriam incorrido por “pelo menos 5 vezes”.
Deve-se assentar que no âmbito do Estado Democrático de Direito, o ônus da imputação criminal recai sobre o titular da ação penal, ao passo que é forçoso admitir que o Parquet não se desincumbiu de individualizar e quantificar as condutas imputadas aos Réus.
Apesar de ter sugerido na denúncia que as agressões se deram de forma habitual dentro de um grande espaço de tempo (dez/17 a fev/18), certo é que a instrução processual serviu para mitigar tal lapso temporal, sobretudo considerando o depoimento prestado pela Assistente Social M.M. B.D. (mídia, f. 446) vejamos:
[00:52:24]: Promotor: O conselho tutelar já tinha ouvido algum tipo de denúncia com relação a ela?
[00:52:27]: Conselheira tutelar: Já!
[00:52:29]: Promotor: Com relação a ele?
[00: 52:30]: Conselheira Tutelar: não!
[00:52:31]: Magistrada: Com relação a mãe…
[00: 52:32]: Conselheira Tutelar: É… A mãe, porque todo mundo… a gente não conhec .. ecia….. ôooo… ôooo… eu pelo menos… inaudível…. então, não… Só dela. Recentemente ocorrido…
[00:52:46]: Promotor: Certo. Então a denúncia com relação a ela era ligada a quê?
[00:52:51]: Conselheira Tutelar: Era que a menina chorava muito…E que era pra gente ver o que estava acontecendo… e ver o porquê que a menina chorava muito…Aí a gente foi ver… e ela estava normal….conversando… não tinha marcas nenhuma pelo corpo…. Aí passou algumas semanas…. aí aconteceu isso tudo…
[…]
Ademais, após ser indagada pelo procurador da Ré [00:54:07] se no momento em que o Conselho Tutelar “viu” a menina ela aparentava estar sendo bem cuidada e feliz, a testemunha foi categórica ao dizer que: “sim, parecia uma criança normal” [00:54:07, mídia f.446].
Assim, verbera-se que tal informação modificou o panorama cronológico trazido pela acusação, afastando todas as suposições e ilações que permeavam os fatos, uma vez que limitou a possibilidade da prática das condutas para somente “algumas semanas”, conjectura que deve ser levada em consideração no momento da apuração dos fatos, inclusive para fins de eventual exasperação da pena.
4) DO FATO A: CRIME DE TORTURA – Art. 1º, II c/c §§ 3ºe 4º, II, ambos da Lei 9.455/97:
Consta na denúncia que: […] em variadas datas não precisadas dos meses de dezembro de 2017 e dos meses de janeiro e fevereiro de 2018, na Rua Cardolindo Eulálio, nº 128, Casa C, Bairro Alvorada, nesta cidade de Visconde do Rio Branco-MG, os denunciados R.V.S e S.P.O, respectivamente padrasto e mãe da criança K.D.E, de 02 anos de idade, em concurso de agentes, submeteram, mediante violência e grave ameaça, a menor em referência, a qual estava sob a guarda e poder dos acusados, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicação de castigo pessoal, causando na vítima lesões corporais de natureza grave (Grifo nosso).
Conforme consta em nossa legislação penal extravagante, estará incurso nos termos do art. Art. 1º, II, c/c §§ 3ºe 4º, II, ambos da Lei 9.455/97, aquele que:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
[…]
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
[…]
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
[…]
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
A materialidade do delito restou formalmente demonstrada através da contundente e impactante prova documental encartada aos autos, sobretudo pelos documentos médicos de ff. 25/26, laudos periciais de ff. 32/44 e 45/47, os documentos de ff. 148/155, 169/273, 303/322 e laudos periciais de ff. 297/298 que comprovam as lesões sofridas pela vítima.
No tocante a autoria, verifica-se que a Ré afirmou serem parcialmente verdadeiros os fatos narrados na denúncia, ressaltando que foi o seu companheiro o autor dos fatos. Negou peremptoriamente ter participado das agressões, afirmando que era vítima de violência doméstica, ressaltando, inclusive, que estava sendo submetida a cárcere privado.
Sobre o depoimento da Ré, vejamos os principais registros que alicerçaram a sua versão nos fatos:
(suprimido para preservar a identidade dos envolvidos)
Neste ponto, pondera-se que a instrução processual não foi capaz de demonstrar que a Ré S praticou as condutas narradas na exordial. Apesar de tal circunstância em primeiro momento não isentar de responsabilidade S.P.O, certo é que afasta a possibilidade do delito ter sido comedido em concurso de pessoas, conforme sustentou a denúncia.
É que para haver “concurso de pessoas” deve estar presente ao menos cinco requisitos, saber: a) pluralidade de agentes; b) relevância causal das condutas para a produção do resultado; c) vínculo subjetivo; d) unidade de infração penal para todos os agentes e; e) existência de fato punível. A ausência de um deles, desnaturaliza o instituto.
No caso dos autos, verifica-se a total irrelevância causal da conduta da Ré para o resultado. Concorrer pra a infração penal importa em dizer que cada uma das pessoas deve fazer algo para que a empreitada tenha vida no âmbito da realidade. Em outras palavras, a conduta deve ser relevante ao ponto de, sem ela, a infração penal não ter ocorrido.
Destarte, não pode ser considerado coautor ou partícipe quem assume em relação à infração penal uma atitude meramente negativa, quem não dá causa ao crime, quem não realiza qualquer conduta sem a qual o resultado não teria se verificado. (MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado, parte geral, v.1, 10ªed., Forense: Método, 2016, p.566).
A própria denúncia é vacilante quanto a tais fatos, uma vez que ao mesmo tempo em que informa que os réus praticaram o delito em concurso de pessoas, ao final precisou socorrer-se de uma norma de extensão prevista no art. 13, § 2º, CP, como forma de tentar responsabilizar a Ré pelos fatos narrados na exordial.
Em sede de alegações finais, o Ministério Público assentou que: “restou sobejamente comprovada a concorrência de estupro de vulnerável e tortura, por omissão, imputada à ré, que tinha o dever de cuidado e poderia agir para evitar o resultado” (MP- f. 519).
Nessa perspectiva, verifica-se que depois da instrução processual o próprio Ministério Público (ao menos que implicitamente) abandonou a narrativa de que os agentes teriam atuado em “concurso de pessoas”, uma fez que se refugiou na tese da “omissão penalmente relevante”, prevista no art. 13, § 2º, do CP com o propósito de satisfazer a sua pretensão condenatória.
Isso se deu, sobretudo, em razão da instrução processual não ter sido conclusiva no sentido de apontar que S teria atuado efetivamente nas agressões de sua filha. Inclusive, existe informações de que ela também era constantemente agredida pelo Réu R. Tal situação, no mínimo, traz o benefício da dúvida em favor da acusada, razão pela qual se revela necessário interpretar o fato à luz do princípio do “favor rei – in dubio pró reo” e desde já deixar superada a discussão afeta a esse ponto.
Pondera-se que superar tal questão se revela importante, uma vez que poupa a Defesa de maiores digressões a respeito do envolvimento ou não da Ré nas condutas que deram azo nas lesões sofridas pela vítima, proporcionando, assim, um enfoque ao que realmente se mostra relevante para o processo: discutir se S podia agir para evitar o resultado.
4.1) DA FIGURA DO AGENTE GARANTIDOR – OMISSÃO PENALMENTE RELEVANTE
Para se iniciar a discussão relacionada à responsabilidade criminal da genitora pela omissão, faz-se mister relembrar os conceitos afetos ao instituto do “agente garantidor”, mormente porque o Titular da Ação Penal se alicerça na tese de que S.P.V, por ser mãe, devia e podia intervir nas agressões de R.V.S no intuito de evitar o resultado.
No tocante à natureza jurídica da omissão, o Código Penal colheu a teoria normativa, pela qual “a omissão é um nada e do nada, nada surge”. Não é punível de forma independente, ou seja, não se pune alguém pelo simples fato de ter se omitido. Só tem importância jurídico-penal quando presente o dever de agir.
A omissão penalmente relevante encontra-se disciplinada pelo art. 13, § 2º, do Código Penal: “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.
Como cediço, tal dispositivo é aplicável somente aos crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, isto é, aqueles em que o tipo penal descreve uma ação, mas a inércia do agente, que podia e devia agir para impedir o resultado naturalístico, conduz à sua produção.
Todavia, é certo que quem tem o dever de agir não pratica, automaticamente, uma conduta penalmente reprovável. É necessário que tenha se omitido quando devia e podia agir de forma a impedir o resultado. Por essa razão, a possibilidade de agir tem sido considerada elemento ou pressuposto do conceito de omissão, que surge como a não realização de conduta possível e esperada (REsp. 897.426/SP, rel Min Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 27.03.2008 – grifo nosso).
Quando se estuda a cadeia causal na omissão do “agente garantidor”, observa-se um desenrolar de um resultado naturalístico que não foi causado pelo sujeito. Acontece que a lei lhe determina a obrigação de intervir nesse processo, impedindo que produza o resultado que se quer evitar. O sujeito não causou o resultado, mas como não o impediu, é equiparado ao seu verdadeiro causador. Portanto, pode-se dizer que na omissão não há nexo de causalidade, mas sim um nexo de “não impedimento”.
Ressaltar isso se revela importante, uma vez que demonstra a necessidade de entrar no mérito da omissão, ou seja, verificar se o agente podia agir diante da daquela situação, ou, ainda, esmiuçar a psique do garantidor como forma apurar se a omissão foi dolosa ou culposa, e, por conseguinte, avaliar grau de sua responsabilidade no resultado.
No caso dos autos, é indiscutível que a Ré, como mãe, possuía o dever de agir no sentido de evitar as agressões que sua filha vinha sofrendo nas mãos do R.V.S. Contudo, observa-se certa vicissitude no tocante a real possibilidade de se evitar os resultados, sobretudo considerando a personalidade extremamente violenta e possessiva de R, que tanto foi destilada durante a instrução processual.
E é sobre esse enfoque que, analisando o contexto cognitivo angariado aos autos, mormente o conteúdo da prova oral colhida na fase judicial, a Defesa Técnica entende que não ficou inequivocamente demonstrado que a Ré se omitira de forma dolosa ou culposa, uma vez que os fatos trazidos na instrução processual revelaram que S tinha seus motivos para não agir diante daquela situação, não sendo razoável exigir um comportamento diverso.
Neste ponto, faz-se mister consignar que a materialidade do delito é tão ululante que chegou a contaminar os vieses cognitivos ligados à autoria que recai sobre ele. Deveras, a primeira análise dos autos é capaz de criar demasiado sentimento de inquietação no sentido de se buscar entender como uma mãe seria capaz de deixar sua filha chegar nesta situação.
Quase que instintivamente, os ouvidos se fecham para cada explicação e repelem qualquer justificativa. A sede de justiça e a vontade de se culpar os responsáveis pelo desgraçado delito transmuta-se em forma de coro em nossos corações…
É neste ponto que devemos parar para refletir, desarmar nossas almas humanas e buscar nos colocarmos no lugar do “outro”. Não da vítima, pobre coitada, que tão nova já experimentou tanto sofrimento… Essa já sofreu demais e merece esquecer-se deste bárbaro crime…
Convida-se para nos colocarmos em um lugar que (hipoteticamente) se revela ainda mais desafiador, pois, a princípio, ninguém consegue se colocar no lugar de alguém que está manchado eternamente por uma chaga; um ser que aos olhos de todos seria um monstro asqueroso e desprezível, cuja ausência neste plano terrestre chegaria a ser desejada.
De qualquer forma, mesmo considerando a dificuldade de se rebaixar ao ponto de se colocar no lugar da Ré, convida-se ao menos para que seja considerada a sua condição pessoal; a sua realidade de vida; os seus traumas pessoais; o seu nível cultural, enfim, tudo para melhor avaliar se S realmente podia agir para evitar os resultados, ou seja, se realmente seria razoável exigir um comportamento diverso da Ré, dentro da sua realidade de vida.
Noutras palavras, a Defesa convida para uma análise técnica dos fatos, distanciando-se do senso comum, tudo isso para obtermos um julgamento justo e imparcial.
Neste ponto, repudia-se com veemência a tentativa do Ministério Público de querer demonstrar na audiência que a Ré seria uma “mulher forte”, “destemida”, e que “seria capaz de se defender do seu companheiro”.
É que além de apelativa, tal pretensão se revela inclusive contraditória. Esse mesmo MP que agora pretende demonstrar que a Ré seria uma “pessoa forte” que “conseguiria se defender do companheiro”, é o mesmo que requer judicialmente medidas protetivas em favor de “vítimas” de violência doméstica, sendo muitos desses “requerimentos” fundados no critério biológico (superioridade de força do gênero masculino) como pressuposto para a concessão das medidas.
Ora. Não se pode ter dois pesos e duas medidas. Não se pode perder a coerência argumentativa com o propósito de punir. Deve-se existir parcimônia para não deixarmos levar pelo senso comum, sob pena de banalização da Ciência Penal.
Excelência. Apesar da tentativa da Acusação no sentido de se tentar criar a figura de que S seria “uma mulher forte”, fato é que tal situação não comprova a sua aderência volitiva às agressões de sua filha.
Com um passado marcado pela violência, uso de drogas, prostituição e abusos, a personalidade “forte” de S poderia facilmente se tratar de uma máscara que na verdade escondia uma mulher submissa, amedrontada, aviltada e desmoralizada pelo meio em que vivia…
S conhece a maldade do homem. Sabe do que ele é capaz de fazer. Já viu e já passou por muita coisa na sua vida. Não se pode julgá-la levando como parâmetro o padrão de vida de uma mulher normal, pois de “normal” é tudo o que a vida de S não foi. Ninguém sabe o que se passava naquela casa. Ninguém sabe o drama vivido por S e sua filha… O que existem são especulações e a tentativa de responsabilizá-la pelos fatos.
Neste ponto, passemos a analisar a versão apresentada por S sobre os fatos que lhe foram imputados:
Quando indagada sobre quando haviam começado as agressões, a Ré informou que:
(suprimido para preservar a identidade dos envolvidos)
Questionada se não teria percebido as lesões na sua filha, a acusada respondeu:
(suprimido para preservar a identidade dos envolvidos)
Na oportunidade, a Ré relatou que: “[…] nunca tinha visto ele agredir a menina existia momentos em que ele estava em um cômodo com ela, e eu ouvia choro e ia perguntar o que estava acontecendo…. ele dizia que não era nada…. a menina que estava fazendo pirraça… ele me agredia e pedia para a menina me agredir também… um dia ele veio me agredir e a menina entrou na frente… ele pegou ela pelos pés e sacudiu e a de cabeça pra baixo (02:57:28 mídia f. 446).
Questionada pela Magistrada o motivo de não ter fugido ou buscado ajuda, a Ré afirmou que:
[…] ele nos mantinha em cárcere privado… eu não podia sair de casa …. não podia atender minha mãe… ele tomou o telefone de mim… eu não podia atender o celular…ele pegou o celular dele … deu pro filho dele Davi…. e tomou o meu telefone e eu fiquei sem celular em casa… ele carregava o celular pra cima e pra baixo… (02:57:39, mídia f. 446).
Por fim, a Acusada afirmou que foi impedida de receber a sua mãe em casa, frisando que R teria ameaçado seus familiares:
[…] a minha mãe quando chamava em casa eu tinha que ficar calada e fingia que não estava em casa… e tinha que conter a minha filha, porque ela é apaixonada com a minha mãe… dela escutar a minha mãe ela começa a gritar. Vovó… Vovó… Vovó, e eu tinha que ficar falando xii xiii… bicho… bicho… pra ela ficar quietinha e minha mãe pensar que a gente não estava em casa, pois eu não podia atender minha mãe em casa…. segundo ele vivia me ameaçando, que ia matar a minha mãe […] que tinha gente de viçosa para pegar o seu irmão e sua mãe…. (03:03:12, mídia f. 446)
Noutro giro, deve-se registrar que a instrução processual demonstrou que apesar de todos os seus defeitos e a sua irresponsabilidade, S cuidava bem da sua filha…
A senhora R.A.P, mãe da acusada, (mídia, f. 446 – 01:05:15] afirmou que:
(suprimido para preservar a identidade dos envolvidos)
No mesmo sentido, a pessoa de Catarina, avó paterna da vítima, alegou em juízo que: (suprimido para preservar a identidade dos envolvidos). Cuidava muito bem da menina, depois que ela juntou com esse homem que ficou assim” (02:28:35, mídia f. 446).
Neste ponto, salienta-se que durante a instrução processual a assistente social do Hospital São João Batista, afirmou que havia ido à casa da ré antes dos fatos, uma vez que existiam denúncias de que a menina estava chorando muito:
[…]
[00:52:46]: Promotor: Certo. Então a denúncia com relação a ela era ligada a quê?
[00:52:51]: Conselheira Tutelar: Era que a menina chorava muito…E que era pra gente ver o que estava acontecendo…e ver o porquê que a menina chorava muito…Aí a gente foi ver…e ela estava normal…conversando…não tinha marcas nenhuma pelo corpo…. Aí passou algumas semanas… aí aconteceu isso tudo…
[…]
Na oportunidade, ao ser indagada pelo procurador da Ré se no momento em que o conselho tutelar viu a menina ela aparentava estar sendo bem cuidada e feliz, a testemunha foi categórica ao dizer que: “sim, parecia uma criança normal” [00:54:07].
Verbera-se que tal situação, além de corroborar com o fato da Ré “cuidar” bem da menina, revela que a sua filha começou a ser violentada próximo à data dos fatos, o que também vai ao encontro com sua versão apresentada pela acusada.
Outrossim, a instrução processual também demonstrou que R se tratava de uma pessoa extremamente ciumenta e com personalidade violenta, o que vai de encontro com a tese de que S estava sofrendo ameaças e sendo submetida a cárcere privado.
Nessa perspectiva, a testemunha A.R afirmou em seu depoimento prestado judicialmente (mídia, f. 446) que familiares de R disseram que ele era uma pessoa muito violenta e extremamente ciumenta. A testemunha afirmou que a irmã mais velha de R relatou que ele era muito violento, batia muito nela, bateu no filho dela (sobrinho dele). Ademais, relatou que ele tinha o histórico de ter agredido outras esposas, além de ter envolvimento com drogas e tomar remédio controlado (00:24:02, mídia f. 446).
A irmã de R, Sra. J. relatou em juízo que ele: “nunca foi normal”… sempre teve transtornos psicológicos… ele era muito ciumento… (01:22:45, mídia).
L.F.A, (ex esposa de R) relatou em juízo que: […](suprimido para preservar a identidade dos envolvidos) me agredia…. já ouvi relatos de que ela já agrediu outras companheiras….Ele era muito ciumento….. Ele já chegou a me machucar com um soco no olho…. (02:39:30, mídia f. 446).
Outrossim, a instrução processual demonstrou que R fez com que a Ré se afastasse de seus familiares, situação que corrobora com a versão apresentada por S no sentido de que ele a mantinha em cárcere privado e ameaçava a matar sua mãe e seu irmão.
Ademais, R.A.P (mídia, f. 446) relatou que diversas vezes tentou visitar a sua neta, mas que […] eles não atendiam a porta [00:57:56]. (suprimido para preservar a identidade dos envolvidos) externa o motivo que supostamente teria ficado impedida de ver a criança, frisando que R teria ficado com ciúmes da proximidade dela com o pai biológico da criança, afirmando que ele teria dito que: “até parece que foi a senhora que deitou na cama com ele” [01:07:08] e completou: “Ele disso que eu não veria a criança tão cedo”.[01:07:20].
Em [01:08:35] afirma que: “eu só podia ver a menina se R estivesse em casa” […] “R passou a não deixar eu ficar junto com S, sempre que eu estava com ela ele tinha que ir pra perto” [01:11:26].
Em [01:08:34] R afirma:
[…] Eu fui na semana seguinte, não deixaram eu subir. Cheguei, ele não estava em casa… Só podia ir lá se ele estivesse em casa… Aí eu liguei pra ele… cá do portão: ‘XXXXX, eu quero ver a XXXXX!!!”. “Não. Eu estou subindo, a Senhora espere”… Passou perto de mim igual um furacão… Foi lá e conversou com a XXXXX… numa escada… nisso a S sentou na porta lá de fora…. eu cá em baixo conversando com ela…. “Ô XXXX eu quero ver a menina”… “Ô mãe, a porta está fechada, se você entrar vai acordar a menina”…. Mas eu quero ver a menina! ….não deixou eu subir…. aí eu saí com o coração na mão… alguma coisa estranha tem… aí veio a semana… mais oito dias da semana… e na outra semana do sábado, veio à tona…. que ela estava no hospital na sexta feira […] (mídia, f. 446)
Por fim, durante o seu depoimento prestado durante a instrução, a pessoa de L.P foi contundente ao afirmar que: “[…] R chegou a proibir que ele se aproximasse da 2ª Ré, sua irmã, razão pela qual ele teria se afastado um pouco” [02:41:27, mídia f. 446].
Nesse diapasão, perguntada sobre a possibilidade da filha estar sendo de alguma forma ameaçada pelo 1º Réu, XXXX afirma que […] “Ro poderia estar ameaçando a sua filha [01:14:07] e que se ela saísse de casa, tinha alguém do alto do morro para vigiar ela” [01:15:21].
Observa-se que o contexto cognitivo angariado aos autos corrobora com a versão apresentada pela Ré, uma vez que a prova oral colhida na instrução foi coerente no sentido de demonstrar que R era uma pessoa extremamente ciumenta e violenta, tudo a evidenciar que esse poderia estar mantendo S em cárcere privado.
Vale lembrar, que como relatado pela Ré e respaldado pelas declarações da assistente social XXXXXX [00:52:51], as agressões contra a menor somente teriam começado semanas antes dos fatos, sendo que até então somente a Ré era vítima de violência doméstica.
Quanto às declarações do Réu R o registra-se que essas foram do início ao fim marcada pela mentira! Afirma-se isso porque desde a sua qualificação, onde a ilustre Magistrada o indaga se ele teria o costume de fazer uso de bebia alcoólica ou drogas e acusado ter afirmado que “NÃO” (a despeito de todas as informações constantes nos autos), quanto ao final do seu depoimento, no qual Magistrada repete a pergunta inicial e o Réu novamente teve o desplante de negar a sua condição de usuário de drogas.
Ocorre que apesar de totalmente dissimulado e falacioso o depoimento do acusado, temos que R acabou confirmando as informações de que esse seria uma pessoa ciumenta, controladora e possessiva.
Chama-se à atenção para o trecho do depoimento onde ele assume que pegou o celular da Ré S, mas afirma que era ela quem teria fornecido a ele o objeto, tendo ela ficado sem celular.
Em outro momento, o Réu afirma que ao pegar o celular dela, percebeu que ela era uma mulher “estrategista”, que mantinha contato com outros homens e que descobriu que ela tinha um relacionamento com um “coroa” da cidade de Ubá-MG.
Alegou que descobriu que ela foi “garota de programa”, mas por amar ela demais acabou aceitando continuar o relacionamento depois de conversar muito com S
De mais a mais, verbera-se que tal situação endossa os indícios de que o Réu poderia, de fato, ter mantido a Ré trancada dentro de casa, tê-la agredido e ameaçado a matar sua mãe e seu irmão. Ora, um homem dominado pelo ciúme é capaz de muitas atrocidades, sobretudo um homem coma as condições psicológicas de R.
Aliás, deve-se registrar que o próprio acusado afirma que faltava muito o emprego e acabou sendo demitido da (suprimido para preservar a identidade dos envolvidos), mesma época em que a Ré alega que R teria se “transformado dentro de casa” e passado a agredi-la constantemente.
Sob tal ótica, o medo de S se revela inclusive compreensível. Mesmo diante do grupo médico que fez o atendimento da vítima no hospital, mesmo na primeira vez que foi ouvida na fase policial, a Ré manteve a versão de que a vítima teria se lesionado com a queda da bicicleta. Manteve tal versão por ainda não se sentir segura. Somente depois que percebeu que R ficaria preso que a Ré se sentiu confortável para prestar a verdadeira versão dos fatos…
Todavia, o seu histórico de vida marcado pela irresponsabilidade como mãe; de ter deixado sua filha aos cuidados da sua avó para sair no mundo à procura de drogas e prostituição, gerou um sentimento de que se poderia esperar qualquer coisa da sua pessoa.
Soma-se isso ao fato de que existe uma natural expectativa gerada pela sociedade no sentido de se esperar que uma mãe cometa um ato heroico forma de repelir qualquer coisa que ameace a integridade física dos seus filhos, observou-se o nascimento de uma “verdadeira culpada” pela desgraça da sua filha.
Ocorre que, como cediço, o Direito não exige ato heroico de ninguém!
Segundo a doutrina de MASSON (2016) o poder de agir consiste na real e efetiva possibilidade de alguém, na situação concreta e em conformidade com o padrão do homem médio, evitar o resultado penalmente relevante, sem colocar em risco a sua própria integridade física.
Por mais deplorável que eventualmente aparente ter sido a “omissão” da Ré, certo é que (considerando a sua realidade cultural, o seu passado, o seu histórico de vida, traumas e medos e, sobretudo, a personalidade violenta do seu companheiro R) não se poderia exigir uma conduta diferente da Ré ao ponto de querer responsabilizá-la pela violência sofrida por sua filha.
Não se poderia exigir que ela “enfrentasse o réu R. Não se poderia exigir que ela ignorasse as ameaças de morte da sua mãe e irmão. Não poderia lhe ser exigido um ato heroico…
Dessarte, considerando a ausência de elementos concretos no sentido de demonstrar de forma cabal que a Ré S realmente podia agir para evitar as lesões provocadas na sua filha, pugna-se pela aplicação do princípio do in dúbio pro reo, devendo a acusada ser absolvida nos termos do art. 386, VII, do CPP.
5) DO FATO B: DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL:
Consta na denúncia que: […] “no mesmo período e local, os denunciados R.V.S e S.P.O, livres e conscientes, em perfeita comunhão de ações e desígnios, praticaram atos libidinosos com a vítima K.D.P.E, de apenas 02 anos de idade, causando-lhe, ademais, lesões corporais de natureza grave”.
Em razão desses fatos, o Ministério Público pugnou pela condenação de S.P.O nos termos do art. 217-A, § 3º, do CP (diversas vezes), na forma do art. 13, § 2º, a e 29, também do Código Penal.
A dinâmica dos fatos não aponta que a vítima sofria abusos sexuais. O laudo pericial não é conclusivo quanto a essa hipótese.
O laudo pericial encartado às ff.45/47 não indicou que houve ruptura do hímem, tampouco constatou a ocorrência de conjunção carnal (vide quesitos, f. 46).
Ao bem da verdade, verifica-se que as lesões descritas como “laceração perineal entre orifício anal e introito vaginal e fissura anal” se revelam mais compatíveis como provenientes da brutal agressão sofrida pela menor, do que para a prática de um ato libidinoso, que possui o dolo específico de satisfação da lascívia.
O elemento subjetivo do crime de estupro de vulnerável é o dolo constituído pela vontade consciente de ter conjunção carnal, com a vítima vulnerável, ou praticar outro ato libidinoso (diverso da conjunção carnal).
O art. 217-A do CP é um tipo que se insere na tipologia em que Welzel denominada como “crime de tendência”. Nesse crime, é necessário o elemento subjetivo especial do injusto, ou seja, o especial fim de possuir sexualmente a vítima no intuito de satisfazer a lascívia. A tendência da ação se encontra envolvida em um determinado ânimo, cuja ausência impossibilita a sua concepção.
Apesar de impactantes as lesões sofridas pela vítima, tão impactantes ao ponto já se esperar qualquer coisa vindo “dos acusados”, o fato é que nem o laudo pericial e nem mesmo a instrução processual conseguiram provar a prática do estupro de vulnerável.
Verbera-se que a durante a instrução a Ré S informou que em determinado dia R teria agredido a vítima enquanto essa estava no vaso sanitário. A acusada alega que a menor K.D.P.E estaria fazendo “manha” para usar o banheiro, razão pela qual R (em um de seus atos de fúria), teria pegado a vítima pelas nádegas (nua), oportunidade em que a vítima teria chorado dizendo: “mamãe machucou”.
Pondera-se, que tal versão é a única existente nos autos e não existe nenhuma informação que a contrarie. Qualquer entendimento diverso configuraria mera ilação, não tendo o condão de embasar um decreto condenatório.
As lesões apresentadas no laudo de ff. 45/47, são, pois, derradeiras das brutais agressões provocadas pelo Réu R em face da vítima, não havendo que se falar na prática de crime de natureza sexual.
Com efeito, considerando que não existem provas da ocorrência do delito previsto no art. 217-A, do CP, pugna-se pela absolvição da Ré nos termos do art. 386, II, do CP.
6- DOS PEDIDOS
Ante o exposto, considerando os argumentos exaustivamente apresentados nas linhas volvidas, requer:
A absolvição de S do delito previsto no Art. 1º, II c/c §§ 3ºe 4º, II, ambos da Lei 9.455/97, considerando a ausência de elementos concretos no sentido de demonstrar a real possibilidade de agir para evitar as lesões, sendo, para tanto, aplicado o disposto no art. 386, VII, do CPP (in dúbio pro reo);
A absolvição de S do delito previsto no art. 217-A, do CP, uma vez que as lesões apresentadas no laudo de ff. 45/47, não foram conclusivas no sentido de apontar a prática do delito, sendo, na verdade, derivadas da brutal agressão praticada pelo Réu R em face da vítima, não havendo que se falar na prática de crime sexual, ante a total ausência de provas sobre o elemento especial do tipo penal. Desta forma, considerando que não existem provas da ocorrência do delito previsto no art. 217-A, do CP, pugna-se pela absolvição da Ré nos termos do art. 386, II, do CP;
Por fim, à luz do princípio da eventualidade, na remota hipótese de Vossa Excelência dar razão à pretensão Ministerial, pugna-se pela aplicação da pena mínima cominada aos delitos.
Termos em que,
Pede Deferimento.
Cidade, Estado, data…..
XXXXXXXX
OAB-MG 00000