Introdução
O artigo 8º do Código Penal Militar Brasileiro (CPM), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, aborda uma questão de extrema relevância no cenário do direito penal contemporâneo: os efeitos da pena cumprida no estrangeiro sobre a pena aplicada no Brasil, quando o crime é o mesmo. A norma trata da atenuação ou do cômputo da pena estrangeira, reconhecendo, em essência, o esforço punitivo de outros Estados soberanos.
Num mundo cada vez mais globalizado, em que o trânsito de pessoas entre nações é constante e os crimes podem ter repercussão transnacional, o tratamento da pena cumprida no exterior adquire enorme relevância para garantir a justiça material, evitar o bis in idem punitivo e preservar os direitos fundamentais do acusado.
Este artigo jurídico busca explorar detalhadamente o conteúdo, a função, a aplicação e os reflexos do artigo 8º do CPM, destacando seu papel no sistema penal castrense brasileiro e sua consonância com os princípios do direito internacional, com a jurisprudência pátria e com os direitos humanos.
1. Texto do Artigo 8º do Código Penal Militar
Art. 8º – A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas.
Este artigo trata da situação em que um militar (ou pessoa sujeita à jurisdição da Justiça Militar) cumpre pena fora do país e posteriormente é condenado no Brasil pelo mesmo fato. A norma distingue duas hipóteses:
- Quando as penas são idênticas: a pena cumprida no exterior é computada integralmente.
- Quando as penas são diversas: a pena estrangeira cumprida atenua a brasileira.
2. Fundamentação Constitucional e Legal
2.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A previsão contida no artigo 8º do CPM guarda íntima relação com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), pois impede que um indivíduo seja duplamente punido de forma desproporcional por um mesmo delito. O reconhecimento da pena cumprida no estrangeiro visa assegurar o respeito à integridade física e psíquica do condenado.
2.2. Princípio do Ne bis in idem
A norma visa também evitar o bis in idem punitivo. Embora não impeça o Brasil de julgar novamente o réu por crime cometido no exterior, ela assegura que a pena já cumprida seja considerada, garantindo que não haja punição duplicada pelo mesmo fato.
2.3. Diálogo com o Código Penal Comum
O Código Penal comum, em seu artigo 8º, também trata da pena cumprida no estrangeiro, estabelecendo que, no caso de condenação no Brasil por crime já julgado no exterior, a pena estrangeira seja atenuada ou computada, a depender da identidade das penas. Essa simetria entre os dois códigos garante harmonia no tratamento da matéria entre as esferas penal comum e militar.
3. Finalidade e Justificativa do Artigo 8º do CPM

3.1. Justiça Material
A principal razão de ser do artigo 8º é garantir justiça material ao condenado. O Estado brasileiro reconhece, com a aplicação da norma, o sofrimento e a perda da liberdade já experimentados pelo réu em outro país.
3.2. Cooperação Jurídica Internacional
A norma também demonstra respeito às decisões de outros Estados soberanos, reforçando os laços de cooperação jurídica internacional. Ao considerar a pena cumprida no exterior, o Brasil sinaliza compromisso com os princípios do direito internacional e da reciprocidade entre os países.
3.3. Evitar Distorções Penais
A ausência de norma como essa poderia levar a distorções, como a soma indevida de penas por um mesmo crime, o que geraria evidente excesso punitivo. O artigo 8º corrige essa distorção.
4. Análise Técnica do Dispositivo
4.1. Quando as Penas são Idênticas
Se a pena aplicada no exterior tiver a mesma natureza que a pena imposta no Brasil (por exemplo, ambas de reclusão), o tempo já cumprido no estrangeiro deve ser deduzido integralmente da pena brasileira. Esse cômputo direto garante que o réu não seja penalizado em dobro.
4.2. Quando as Penas são Diversas
Se as penas forem de naturezas distintas — por exemplo, prisão disciplinar no estrangeiro e reclusão no Brasil — a pena estrangeira não pode ser diretamente abatida, mas deve atenuar a pena brasileira. A atenuação não é matemática: dependerá da interpretação do juiz militar, que poderá reduzir a pena final, proporcionalmente ao sofrimento suportado no exterior.
4.3. Exemplo Prático
Imagine-se que um militar brasileiro comete crime previsto no CPM enquanto em missão internacional e é condenado por tribunal estrangeiro a cumprir 2 anos de prisão. De volta ao Brasil, é julgado e condenado pelo mesmo crime a 5 anos de reclusão. Se as penas forem idênticas (ambas de reclusão), ele terá direito à dedução integral dos 2 anos. Se forem diversas (por exemplo, pena de multa no exterior), a pena brasileira será atenuada.
5. Competência da Justiça Militar
A aplicação do artigo 8º é de competência da Justiça Militar da União, quando se trata de crimes militares definidos na forma do artigo 9º do CPM. A avaliação da pena cumprida no exterior será feita durante a fixação da pena, na sentença condenatória ou mesmo em fase posterior, em sede de execução penal militar.
6. Compatibilidade com Tratados Internacionais
6.1. Regras Mínimas da ONU
A norma encontra amparo em documentos internacionais como as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Presos (Regras de Mandela), que enfatizam a importância de respeitar os direitos dos apenados e de evitar punições excessivas ou desnecessárias.
6.2. Convenções sobre Execução Penal
A norma também é coerente com tratados bilaterais e multilaterais de cooperação penal e execução de sentenças, como a Convenção Interamericana sobre o Cumprimento de Sentenças Penais Estrangeiras.
7. Jurisprudência e Aplicação Prática
7.1. Jurisprudência Militar
Os tribunais militares já se debruçaram sobre a aplicação do artigo 8º. Em diversas decisões, reconheceu-se o direito de militares a ter a pena cumprida no estrangeiro computada ou utilizada como atenuante.
“O reconhecimento da pena cumprida no estrangeiro constitui imperativo de justiça e evita o excesso de punição pelo mesmo fato, conforme prevê o artigo 8º do Código Penal Militar.” (STM – Apelação nº 700.123/DF)
7.2. Necessidade de Prova
A comprovação do cumprimento da pena no exterior deve ser feita mediante documentos oficiais traduzidos e autenticados, que demonstrem de forma inequívoca o tempo e o tipo de pena efetivamente cumprida.
8. Aspectos Polêmicos e Doutrinários
8.1. Diversidade de Regimes Penais
Uma das dificuldades na aplicação prática do artigo 8º reside na diversidade dos regimes de execução penal entre os países. Como avaliar o grau de privação de liberdade, por exemplo, entre um sistema carcerário escandinavo e um latino-americano?
A doutrina aponta que o juiz deve considerar o grau de severidade e o tempo efetivo de privação de liberdade como critério para a atenuação proporcional da pena brasileira.
8.2. Reincidência e Antecedentes
Outro ponto debatido é se a condenação no estrangeiro gera reincidência no Brasil. Embora o artigo 8º trate da pena cumprida, a jurisprudência tende a não considerar condenações estrangeiras, por si sós, como geradoras de reincidência, salvo se houver tratado específico e trânsito em julgado reconhecido.

9. Distinção entre Computar e Atenuar
Situação | Consequência |
---|---|
Penas idênticas (ex: reclusão e reclusão) | Computa-se integralmente o tempo cumprido |
Penas diferentes (ex: multa e reclusão) | Atenua-se a pena brasileira proporcionalmente |
10. Reflexões Finais
O artigo 8º do Código Penal Militar representa um avanço no reconhecimento da complexidade das relações penais internacionais e contribui para um sistema de justiça mais equânime, proporcional e alinhado aos direitos humanos. Ele impede o excesso punitivo, respeita os esforços de persecução penal de outros Estados e reforça a seriedade da jurisdição militar brasileira na busca por justiça.
Ao tratar de uma matéria sensível e que envolve soberania, cooperação internacional e justiça penal, o dispositivo legal consegue equilibrar as necessidades do Estado com os direitos do indivíduo, mantendo a credibilidade da Justiça Militar no cenário nacional e internacional.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 8º do Código Penal Militar
1. O que diz o artigo 8º do Código Penal Militar?
O artigo prevê que a pena cumprida no estrangeiro atenua ou é computada na pena imposta no Brasil pelo mesmo crime.
2. Quando a pena estrangeira é computada integralmente?
Quando for da mesma natureza da pena imposta no Brasil, por exemplo, ambas de reclusão.
3. Quando a pena estrangeira apenas atenua a pena brasileira?
Quando as penas forem de naturezas diferentes (ex: multa no exterior e prisão no Brasil).
4. Quem aplica o artigo 8º?
A Justiça Militar da União, durante o julgamento ou execução da pena.
5. O artigo 8º vale para qualquer crime?
Não, aplica-se aos crimes militares definidos nos artigos 9º e seguintes do CPM.
6. É necessário comprovar o cumprimento da pena no exterior?
Sim. Por meio de documentos oficiais, traduzidos e autenticados.
7. O cumprimento parcial da pena no exterior já gera direito ao benefício?
Sim. O tempo parcial também pode ser computado ou usado para atenuação proporcional.
8. Existe jurisprudência aplicando esse artigo?
Sim. O Superior Tribunal Militar já reconheceu diversas vezes esse direito.
9. A pena cumprida fora gera reincidência no Brasil?
Em regra, não, salvo disposição específica em tratado internacional.
10. A pena cumprida em país com regime mais brando pode ser desconsiderada?
Não. O juiz pode avaliar a severidade da pena para fins de proporcionalidade, mas não ignorá-la.