EXMA. SRA. DRA. JUIZA SUMARIANTE DO II TRIBUNAL DO JÚRI DE BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS
Autos nº 00
Acusado: XXXXXX
XXXXXX, já qualificado nos Autos em epígrafe, vem, respeitosamente, à presença de V. Exa., através da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, apresentar ALEGAÇÕES FINAIS, da forma a seguir:
1 – PRELIMINARMENTE
1.1 – INÉPCIA DA DENÚNCIA QUANTO À QUALIFICADORA E AUSENCIA DA JUSTA CAUSA PARA QUALIFICADORA SUBJETIVA.
Segundo a denúncia a motivação torpe se deu por:
“(…) o denunciado, para se ver livre da dívida, resolveu matar a vítima. Torpe motivo”.
Doutrina e Jurisprudência são unanimes ao afirmar que a dívida por dinheiro não configura a qualificadora da torpeza, não havendo adequação entre o suporte fático e a pretendida condição de maior punibilidade.
A regra, inserta no art. 41, do CPP e exigida pelos princípios da ampla defesa e contraditório, consiste na narração que especifique a circunstância fática que configurou a qualificadora prevista no tipo legal.
Após relatar sucintamente o fato a denúncia requer a pronúncia e posterior condenação do acusado por homicídio na forma tentada qualificado pelo motivo torpe. Entretanto não foi feita a devida referência as razões partidas da motivação do acusado ser revestido de maior reprovabilidade tal omissão comprometeu irreparavelmente o exercício da plena defesa.
A Denúncia de forma lacônica simplesmente declarou que o motivo seria torpe porque o denunciado resolveu matar a vítima por uma dívida.
A exposição Clara inequívoca detalhada e prévia de todo o teor da acusação é requisito fundamental para a existência do contraditório e para o pleno exercício do direito de defesa. Somente poderá haver defesa em sua Plenitude satisfazendo assim a isonomia material e possibilitando o contraditório com a plena ciência do fato imputado.
Nesse sentido, eis o entendimento do STF, em julgamento do HC 73271SP:
O Ministério Público, para validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma necessária base empírica, a fim de que o exercício desse grave dever-poder não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal. (…) A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o pleno exercício do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta.
O fato em tese delituoso, uma vez atribuído alguém, deve atender a todos os requisitos dispostos normativamente. Nos termos do artigo 41 do Código de Processo Penal deverá ser narrado por fato revestido de tipicidade.
Para a existência da subsunção do fato naturalístico a narrativa normativa deverá existir satisfação de todos os requisitos típicos.
Narrar somente os aspectos subjetivos de um fato, data venia, não significa descrever o fato de vestido de tipicidade
O Tribunal de Justiça do Paraná descreve essa terrível lacuna descrita na denúncia, mediante a fundamentação de que “na espécie não se está afastando as qualificadoras em decorrência da ausência de provas, mas, sim, em virtude de os fatos narrados na denúncia não configurarem nenhuma das qualificadoras admitidas na pronúncia” (TJ/PR Acórdão 19232 Processo: 332727-9 Recurso em Sentido Estrito Comarca: Maringá Vara: 4ª Vara Criminal Natureza: Criminal Órgão Julg.: 1ª Câmara Criminal Relator: Desembargador Jesus Sarrão Dados da Publicação: DJ 7186 18/08/2006)
No mesmo entendimento, a defesa entende que a qualificadora não foi perfeitamente descrita na denúncia, por não guardar identificação com o motivo subjetivo do crime.
Acontece, que a melhor Doutrina e majoritária Jurisprudência, não reconhecem o motivo torpe em uma tentativa de homicídio por causa de uma dívida, existente entre os envolvidos.
Não diverge desse nosso entendimento o nosso egrégio Tribunal de Justiça mineiro, que acompanha os demais Tribunais da federação:
EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO – EXISTÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA E ANIMUS NECCANDI – PRETENSO DECOTE DA QUALIFICADORA DO MOTIVO FÚTIL – PRESENÇA DE ELEMENTOS DE CONVICÇÃO QUE EMBASAM VERSÃO DE QUE O DELITO FOI PERPETRADO EM RAZÃO DE UMA DÍVIDA – SENTENÇA DE PRONÚNCIA MANTIDA. – A pronúncia é mero juízo de admissibilidade, não cabendo aprofundamento no contexto probatório, que deve ser analisado pelo soberano Tribunal do Júri. (TJMG – Rec em Sentido Estrito 1.0718.08.004015-4/001, Relator (a): Des.(a) Paulo Cézar Dias , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 19/02/2013, publicação da sumula em 26/02/2013)
E ainda, no mesmo sentido:
EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO – EXISTÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA E ANIMUS NECCANDI – PRETENSO DECOTE DA QUALIFICADORA DO MOTIVO FÚTIL – PRESENÇA DE ELEMENTOS DE CONVICÇÃO QUE EMBASAM VERSÃO DE QUE O DELITO FOI PERPETRADO EM RAZÃO DE UMA DÍVIDA – SENTENÇA DE PRONÚNCIA MANTIDA. – A pronúncia é mero juízo de admissibilidade, não cabendo aprofundamento no contexto probatório, que deve ser analisado pelo soberano Tribunal do Júri. (TJMG – Rec em Sentido Estrito 1.0718.08.004015-4/001, Relator (a): Des.(a) Paulo Cézar Dias , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 19/02/2013, publicação da sumula em 26/02/2013)
Assim tem entendido o STJ:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. NÃO OCORRÊNCIA. MOTIVO FÚTIL. USO DE MEIO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DO OFENDIDO. EXCLUSÃO DAS QUALIFICADORAS. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
- O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e este Superior Tribunal de Justiça, por sua Terceira Seção, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.
- A tarefa do julgador, ao motivar as decisões relacionadas ao Tribunal do Júri, revela-se trabalhosa, uma vez que deve buscar o equilíbrio, a fim de evitar o excesso de linguagem sem se descurar da necessidade de fundamentação adequada, conforme preceitua o art. 93, IX, da Constituição Federal. 3. No caso dos autos, não se verifica o alegado excesso de linguagem, porquanto as instâncias ordinárias se limitaram a apontar dados dos autos aptos a demonstrar a existência de prova da materialidade e de indícios suficientes de autoria, em estrita observância ao disposto no art. 413, § 1º, do Código de Processo Penal, não se verificando, portanto, a emissão de qualquer juízo de certeza.
- A exclusão de qualificadora constante na pronúncia somente pode ocorrer quando manifestamente improcedente, sob pena de usurpação da competência do Tribunal do Júri, juiz natural para julgar os crimes dolosos contra a vida
- No caso, as instâncias ordinárias afirmaram que há elementos probatórios a indicar que o crime foi cometido por motivo fútil pois decorrente de dívida no valor de R$ 40,00 realizada pela vítima para aquisição de pedras de crack e com recurso que dificultou a defesa do ofendido já que, após emprego de soco e locomoção da vítima para lugar diverso daquele onde empreendido o ato de violência, em superioridade numérica, teria desferido ao menos um golpe com pedaço de madeira na cabeça da vítima, causa de sua morte. Não sendo manifestamente improcedentes a incidência das qualificadoras, inviável sua exclusão por esta Corte, por ser da competência do Tribunal do Júri sua apreciação. 6. Habeas corpus não conhecido. HC 410148 / RS – Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA
O motivo torpe é aquele considerado como imoral, vergonhoso, repudiado moral e socialmente, algo desprezível.
Já o motivo fútil é aquele motivo insignificante, banal, motivo que normalmente não levaria ao crime, há uma desproporcionalidade entre o crime e a causa.
A denúncia apresenta vício de forma, uma vez que não conta com a descrição correta da qualificadora e, assim, impossibilita a ampla defesa e o contraditório da defesa e o reconhecimento da preliminar é medida que se impõe.
Portanto, ausente justa causa, diante da inadequação flagrante do fato descrito e a condição de maior punibilidade a ele proposto, não poderá ser submetido ao contraditório a qualificadora subjetiva da torpeza.
1.2 – DA AUSÊNCIA DA FORMALIDADE DO RECONHECIMENTO
Audiência designada para oitiva da vítima, essa não compareceu, mesmo diante da insistência do Ministério Público resultou inexitosa, em face de não ter sido a vítima encontrada no endereço.
Em razão do não comparecimento, foi dispensada pelo Ministério Público, tendo sido substituída por outra testemunha. O acusado não teve a oportunidade de ter retratada a sua participação nos fatos, tendo em vista que nem a vítima, nem o acusado foram inquiridos quanto ao reconhecimento na delegacia.
O artigo 226 do Código de Processo Penal é claro:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – (…);
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
A vítima era a pessoa mais interessada para o bom andamento do processo e apta a esclarecer a verdade real e ser confrontada perante a justiça, para afirmar os fatos narrados na delegacia, porém, restou inerte, dificultando ainda mais a busca da tão falada justiça.
No mesmo sentido, a única testemunha presencial, divorciou totalmente seu depoimento na delegacia, confirmando não conhecer o acusado e afirmando perante este juízo que não estava no local no momento dos disparos.
O pedido de condenação por parte do Ministério Público, é baseada exclusivamente na investigação criminal, sendo incapaz, de firmar uma condenação criminal.
Como já relatado acima, embora haja prova da materialidade delitiva, não há prova segura da autoria delitiva em relação ao acusado. Isso porque a única prova a abraçar a acusação é o depoimento prestado pela vítima e testemunha na fase inquisitorial, o qual não foi corroborado pela prova judicial, inviabilizando, assim, a sua utilização para embasar uma condenação, conforme rege o artigo 155 do CPP.
Entretanto, as afirmações do ofendido não restaram confirmadas em juízo, e não há outras testemunhas que presenciaram o fato, a fim de corroborar a versão da vítima.
Com efeito, o que existem são apenas as declarações do ofendido colhidas na fase policial, sem o devido reconhecimento formal.
De salientar, outrossim, que se houvesse o fato de a vítima ter reconhecido o acusado na fase policial não seria suficiente para embasar um decreto condenatório, pois tal ato serve apenas para formar a opinio delicti do órgão ministerial, até porque colhido sem contraditório e sem que se possa garantir isenção de seus atos.
Em assim sendo, ponderado o princípio do in dubio pro reo, forçosa é a sua absolvição, esteira do disposto no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
2– NO MÉRITO
2.1 – DA IMPRONÚNCIA:
A vítima, devidamente intimada, por diversas vezes, não compareceu à audiência de instrução para confirmar os fatos narrados na fase policial.
Nenhuma testemunha ouvida em juízo foi capaz de elucidar os fatos.
O depoimento do acusado, fl. 60/60v, foi totalmente em consonância ao relatado na delegacia:
“(…) que ao tomar conhecimento dos fatos negou qualquer tipo de envolvimento nos fatos; que perguntado se Juarez já prestou serviços de pintura para o declarante, respondeu que não, que não conhece tal pessoa; que perguntado se já possuiu u veículo FIAT palio, respondeu que não; (…)”.
O acusado, quando ouvido na fase judicial, negou categoricamente os fatos narrados na denúncia e que não conhece Juarez:
“(…) eu não conheço esse rapaz, que nunca prestou serviço pra mim. Qual obra que ele trabalhou comigo? Que nesse período de trabalho nunca teve problema com qualquer funcionário; que nunca teve nenhum veículo FIAT PÁLIO; que nunca teve problema com esse Juarez; que conseguiria relembrar de todos os funcionários que passaram pela empresa (…)”.
Ademais, a prova oral colhida não oferece dados concretos de forma a elucidar o fato denunciado. Ao ser submetida ao crivo do necessário contraditório judicial.
A única testemunha que seria capaz de confirmar os depoimentos colhidos na fase investigativa, foi firme em desmerecer seu depoimento perante a autoridade policial e conforme esclareceu, não presenciou os fatos, não reconheceu o acusado e não confirmou seu depoimento extrajudicial.
Na delegacia, Angelina dos Santos Correa, fl. 26/26v ela alegou:
“(…) e no dia dos fatos em apuração, em 19/04/2012, por volta das 7 horas, caminhava pela Rua Major Delfino de Paula, no bairro São Francisco, quando Juarez avistou um veículo Fiat/Palio, a acenou para o motorista, o qual parou o automóvel; que Juarez se apressou para encontrar aquele motorista, enquanto a depoente andou mais devagar; que pouco depois, a depoente ouviu um estampido, e Juarez retornou com a mão no abdômem, dizendo que seria atingido. (…)”
Na contramão de seus esclarecimentos, em juízo, CD fl. 178/181, a mesma testemunha desconheceu diversos fatos narrados em seu depoimento na delegacia:
“(…) que é ex. namorada de Juarez, que não falou quem seria essa pessoa; que não conhece a pessoa; que não falou nenhum nome de quem seria, apenas uma pessoa que trabalhou, que não tem contato com a vítima e que não comentou quem seria o autor; que depois dos fatos acompanhou a vítima até o hospital e que não estava próxima dos fatos; que não chegou a ver nada; que não chegou a ver carro, nada; nem qual veículo era; que não conhece José Newton; que Juarez fazia serviços de Bico de Pintura; que fez o serviço e iria cobrar um valor; eu fiquei numa distância completamente dentro da casa, quando eu desci as escadas ele veio na minha direção e disse que foi atingido; que depois no hospital ele não disse nada, não detalhou, depois que melhorou não comentou nada e que não conhece o autor dos fatos.
A vítima, quando ouvida na delegacia, confirmou que estaria caminhando com sua namorada na avenida major Delfino de Paiva, bairro São Francisco, quando avistou Zé Newton. Ocorre, porém, que a testemunha, contrariou seu depoimento confirmando em juízo que estaria dentro de casa.
O relatório da Investigação, baseado no depoimento colhidos pelos envolvidos, confirmou que testemunha e vítima andavam pela avenida Major Delfino de Paiva, novamente divorciando do depoimento prestado pela testemunha, Angelina dos Santos Correa, na fase judicial.
Outra testemunha ouvida em Juízo, o investigador de Polícia, Bruno Souza Nunes, nada soube afirmar sobre a dinâmica, apenas confirmando a comunicação, fl. 54/57, que a subscreveu, e que nada concluiu a apuração, pois até então, a vítima foi convidada via telefone para realizar o reconhecimento do autor, mas não aceitou tal convite e na mesma comunicação, o autor, também não havia sido comunicado sobe os fatos.
“(…) que apenas fez o levantamento para encontrar fotografia do acusado para reconhecimento da vítima e que foi feito o reconhecimento via cartorária. Que não teve contato com a vítima. Que não se recorda de qualquer detalhe sobre os fatos (…)”
Ou seja, até aquela presente data, não havia a conclusão daquela investigação, não podendo dar credibilidade àquela Comunicação e ao depoimento do Investigador.
O deslinde do caso se deu por conta de uma suposta dívida trabalhista, entre acusado e vítima, porém, conforme depoimentos colhidos pelas testemunhas, o acusado nunca teve problemas com seus funcionários, durante todos esses anos de prestação de serviços.
A testemunha, Ernando Pereira Coelho, fl. 158, confirmou que a vítima nunca trabalhou para o acusado, confirmou que trabalhava com o acusado de 2102 à 2015, conhecia todos os funcionários e não conhecia a suposta vítima:
“(…) que trabalhou com ele nessa época, que não lembra de Juarez Carlos Machado trabalhando com José Newton e que conseguiria reconhecer a vítima dos autos e que era encarregado do acusado e trabalhava na frente de trabalho e nessa época dos fatos não se lembra de qualquer problemas com funcionários e não houve reclamação de pagamento e muito difícil acontecer atraso de pagamento e não presenciou qualquer problema com funcionários na época dos fatos e que trabalhou com o acusado de 2012 à 2015. E que sua relação sempre foi de patrão e empregado com discussão normal de trabalho como serviços sem fazer. (…)”.
Todas as outras testemunhas confirmaram que nunca tiveram problemas com pagamento ou entre José Newton e Juarez.
Excelência, o único depoimento prestado por um Policial Civil ouvido em juízo, não se colhe qualquer menção específica quanto à participação do acusado, não constituindo indício suficiente de autoria.
Pois bem, a declaração Internacional dos direitos Humanos – no qual expressa os princípios e valores universais, consagrou, em seu artigo XI, um relevantíssimo valor internacional: a presunção de inocência:
“Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”.
No mesmo sentido, a Convenção Européia dos Direitos Humanos de 1950, em seu artigo 6º, item 2, dispõe que:
“Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.”
O Pacto de São José da Costa Rica, igualmente, em seu artigo 8.2, prevê que:
“Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas (…).”.
Eis o que nos ensina o nosso renomado Guilherme de Souza Nucci:
“Logicamente, cuidando-se de um juízo de mera admissibilidade da imputação, não se demanda certeza, mas elementos suficientes para gerar dúvida razoável no espírito do julgador. Porém, ausente essa suficiência, o melhor caminho é a impronúncia, vedando-se a remessa do caso à apreciação do Tribunal do Júri” ( Código de Processo Penal Comentado, 9ª ed. Revista dos Tribunais, p. 759).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por intermédio de decisão exarada pelo Des. Álvaro Mayrink Costa, deixou consignado que:
- Não compete ao réu demonstrar a sua inocência, mas ao órgão do Ministério Público o juízo de reprovação, pois por exclusão, suspeita ou presunção inadmite-se a formação de um decreto condenatório. 3. Recurso improvido” (TJRJ, 3ª CCrim., Ap. 0436/1998, Rel.Des. Álvaro Mayrink da Costa, j.29/09/98, unânime).
Cabe lembrar, ainda, que a melhor hermenêutica ensina que havendo definição legal de determinada fenômeno, denomina-se interpretação autêntica, como se concretiza no art. 239 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”
Vale lembrar o que diz a respeito da pronúncia, o ilustre e renomado Professor Júlio Fabbrini Mirabete:
“Embora para a pronúncia basta a suspeita jurídica derivada de um concurso de indícios, devem estes ser idôneos, convincentes e não vagos, duvidosos, de modo que a impronúncia se impõe quando de modo algum possibilitariam o acolhimento da acusação pelo Júri.” (in Código de Processo Penal Interpretado, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 1996, p. 488). Negritei.
Impende salientar que em sede de pronúncia também deve, por força do inciso LVII do art. 5º da Constituição da Republica: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, prevalecer este princípio norma, até mesmo, e principalmente, no curso de procedimento bifásico do Tribunal do Júri.
Com espeque neste princípio prevalente de presunção de inocência é que a lei processual penal, art. 413 cabeça e § 1.º, ambos do CPP, exige a fundamentação da decisão de pronúncia em prova da materialidade e indícios suficientes da autoria.
Nenhuma circunstância conhecida ou provada, já que nada foi provado em desfavor do acusado, com relação aos fatos constante da peça de ingresso, autoriza, por indução, a concluir que esta possa ser autora dos fatos.
Assim, em recente decisão, tem entendido o nosso Egrégio Tribunal:
“EMENTA: DECRETO DE IMPRONÚNCIA – IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL DESACOLHIDA – INDÍCIOS INSUFICIENTES DE AUTORIA – RECORRENTE IMPRONUNCIADO – AUSÊNCIA DE INTERESSE EM AVIAR RECURSO DE APELAÇÃO – RECURSO DEFENSIVO INTERPOSTOS PELOS DEMAIS RÉUS – IMPROVIMENTO – PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA DESACOLHIDA – TEOR DE DEPOIMENTO PRESTADO POR MENOR JÁ CONHECIDO PELA DEFESA – IN DUBIO PRO SOCIETATE – CRIMES CONEXOS SUJEITOS à APRECIAÇÃO DO TRIBUNAL POPULAR. Não tem lugar a irresignação ministerial quanto à impronúncia de um dos réus, se em relação a este os indícios de autoria mostram-se insuficientes. Ao réu impronunciado falece interesse processual em aviar recurso de apelação tendente à absolvição sumária, havendo sido acolhida a tese defensiva pertinente à inexistência de provas a demonstrarem sua participação em empreitada delitiva. A circunstância de haver sido indeferida a oitiva de menor no curso da ação penal não constitui prova suficiente de cerceamento de defesa, mormente em se considerando já haver tomado ciência a defesa do teor de seu depoimento prestado na representação criminal, cumprindo ao magistrado avaliar a pertinência da prova, a teor do disposto no art. 400, § 1º, do CPP. Comprovada a materialidade e presentes indícios suficientes de autoria, incensurável o decreto de pronúncia editado em desfavor dos demais recorrentes, incumbindo ao Tribunal Popular, inclusive, análise quanto à perpetração dos crimes conexos à tentativa de homicídio, por força do disposto no art. 78, I, do CPP. (TJMG – Apelação Criminal 1.0082.17.000671-0/001, Relator (a): Des.(a) Matheus Chaves Jardim , 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 28/06/2018, publicação da sumula em 09/07/2018). (negrito acrescido)
Nesse sentido acompanha o Superior tribunal de Justiça:
“A ação penal deve estar acompanhada de indícios de veracidade. Doutrinariamente, costuma-se realçar o repetido requisito – o fumus boni iuris. Exige-se o mínimo de indicação de existência do fato, para ser definida sua capitulação normativa. Qualquer elemento de convicção é idôneo. Não há prova preestabelecida. Evita-se a mera fantasia, o espírito de emulação” (STJ, RHC 1.025, Rel.min. Vicente Cernicchiaro, DJU 3/2/92, p.475).
A propósito, peço venia a vossa excelência, e destaco a crítica construtiva e pertinente do MM juiz de Direito do Tribunal do Júri da Comarca de Itabuna, Dr. Marcos Antônio santos Bandeira, a respeito do propalado princípio in dúbio pro societate:
“Até há pouco tempo nós aplicávamos, no exercício da judicatura criminal, cegamente, o princípio in dubio pro societate, como vem ocorrendo com a maioria dos juízes que moureja na Vara do Júri, atendendo, principalmente, à produção dogmática predominante no Direito Processual Brasileiro (…)
Neste ínterim, havendo duas versões no processo, deve prevalecer aquela que beneficia o réu, em homenagem ao principio do in dubio pro reo, no qual, na dúvida, a decisão deve ser a mais benéfica para o réu.
Já proclamou o Supremo Tribunal Federal:
“O aforismo in dubio pro societate que, malgrado as críticas procedentes à sua consistência lógica, tem sido reputada adequada a exprimir a inexigibilidade de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia -, jamais vigorou no tocante à existência de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia -, jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime, em relação a qual se reclama esteja o juiz convencido. O convencimento do juiz, exigido na lei, não é obviamente a convicção íntima do jurado, que os princípios repeliriam, mas convencimento fundado na prova: donde a exigência – que aí cobre tanto a da existência do crime, quanto da ocorrência de indícios de autoria, de que o juiz decline na decisão os motivos de seu convencimento.” (HC 81.646-PE, rel. Sepúlveda Pertence, informativo 271).
Concluímos que inexistem sequer indícios de autoria em relação ao acusado.
O Ministério Público pede a pronúncia do acusado com base nos depoimentos prestados na fase policial, menosprezando os princípios da ampla defesa e contraditório bem como a afronta ao art. 155 do CPP.
Os depoimentos em sede policial não podem ser utilizados como prova condenatória, pois é parte de procedimento administrativo e investigatório, não possuindo as garantias constitucionais da Ampla Defesa e do Contraditório.
O inquérito policial, como ato administrativo de natureza discricionária é unilateral e inquisitorial, servindo tão-só para trazer informações para o Ministério Público ofertar a denúncia, mas jamais se basta para justificar, pelo Judiciário, a prolação de uma sentença condenatória, o que constituiria em grave lesão à garantia constitucional.
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Com fundamento nos art. 155 e 414 do CPP, requer impronuncia do acusado, diante da inexistência de indícios suficientes da autoria.
1.2 – DA DESCLASSIFICAÇÃO:
O denunciado, quando ouvido em juízo confirmou que não conhece a vítima e nunca se envolveu em fatos dessa modalidade.
A vítima, quando foi ouvido na delegacia informou que o acusado deu um tiro ao lado do seu pé e outro no seu abdome.
A única testemunha que se dizia ter presenciado os fatos narrados na denúncia, negou a sua presença e afirmou ter chegado após os disparos:
No caso, não existe a mínima prova que suscite a dúvida. As provas dos autos demonstram, de maneira clara e induvidosa, que o réu não foi o autor dos disparos.
Contudo, analisando as provas juntadas, o depoimento da vítima e da testemunha, poderíamos chegar à conclusão de que a intenção do suposto algoz não era matá-la, pois, se fosse essa a intenção, certamente já o teria feito anteriormente, pois de acordo com o depoimento dos envolvidos, a vítima era conhecida do suposto autor, e seria facilmente localizada pelo autor.
A conduta por suas próprias características não serve para sustentar uma imputação por crime doloso contra a vida, devendo pois acertar pela decisão desclassificatória.
É de se registrar, inclusive, que se o acusado tivesse a intenção de matar a vítima não teria encontrado com ela em um local conhecido e que poderia ser facilmente reconhecido.
Não teria o acusado desistido e deixado a vítima sair do local, pois possuía condições físicas de prosseguir no ataque, o que não ocorreu, e demonstra que o acusado realmente não tinha a intenção de matá-la.
O acusado poderia prosseguir e, após disparo, deixou de agir, devendo incidir, portanto, a regra prevista no art. 15 do Código Penal, pois o mesmo poderia, sem a interferência de terceiros, percorrer todo o iter criminis do delito de homicídio, devendo, contudo, responder pelos atos até então praticados.
Art. 15 – O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.
Eis a jurisprudência:
“Se o agente podia persistir na agressão, mas dela desistiu voluntariamente, não agiu com ânimo de matar, que é essencial para a configuração da tentativa de homicídio.” (RT 566/304).
CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TENTATIVA. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA PARA LESÕES CORPORAIS. RECURSO MINISTERIAL. PRONÚNCIA. INTENÇÃO DE MATAR NÃO EVIDENCIADA. RÉU ATIRADOR DE ELITE. ÚNICO TIRO DESFERIDO. VÍTIMA ATINGIDA NA PERNA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA.
I. Hipótese na qual a inicial acusatória descreveu que o réu se desentendeu com a vítima em virtude de sistemática interna de distribuição do serviço, sendo que o fato terminou com o acusado sacando sua arma e disparando contra a vítima, atingindo-a na perna.
II. Deve ser considerado, na hipótese, ter sido efetuado apenas um disparo, de pequena distância, e por um atirador de elite, que possui conhecimento acerca da arma de fogo e, provavelmente, cursos de tiro, sendo que se realmente tivesse a intenção de matar a vítima não teria atirado em sua perna.
III. Não verificada a existência de indícios da prática do delito de tentativa de homicídio, suficiente para embasar uma sentença de pronúncia, resta configurada a ocorrência de constrangimento ilegal.
IV. Deve ser cassado o acórdão recorrido e restabelecida a sentença que desclassificou a conduta do paciente para lesões corporais.
V. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.(STJ, 5ª Turma, HC 58807/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, v.u., j. 19.06.2007; pub. DJU de 06.08.2007, p. 556).
Nesse sentido já decidiu o TJMG:
EMENTA: PROCESSUAL PENAL – PRONÚNCIA – TENTATIVA DE HOMICÍDIO – DESCLASSIFICAÇÃO PARA LESÃO CORPORAL – POSSIBILIDADE. Na conformidade da doutrina e jurisprudência dominantes, inexistindo nos autos os elementos constitutivos de infração da competência do Tribunal do Júri, notadamente o “animus necandi”, aliado à desistência voluntária do agente, é de rigor a sua desclassificação para outra da competência do Juízo Comum. Recurso provido.”(RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 1.0720.03.012579-6/001 – COMARCA DE VISCONDE DO RIO BRANCO – RECORRENTE (S): ALEXANDRE CLAUDINO – RECORRIDO (A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS – RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS
Diante do exposto, considerando que as provas demonstram, sem sombra de dúvidas, a ausência do animus necandi, a desclassificação crime que não seja da competência do Tribunal do Júri (lesão corporal leve) é medida que direito, na forma do art. 419 do CPP.
1.3 – DA DESQUALIFICAÇÃO
A qualificadora do homicídio, para ser admitida na pronúncia exige a existência de indícios e sobre ela, cabendo ao juiz fundamentar a decisão quanto à existência das qualificadoras, indicando os fatos que ensejariam seu reconhecimento.
De uma forma muito sucinta e sem descrever corretamente os motivos do delito, segundo a denúncia a motivação torpe se deu por:
“(…) o denunciado, para se ver livre da dívida, resolveu matar a vítima. Torpe motivo”.
O motivo torpe é aquele ignóbil, repugnante, que ofende gravemente o sentimento social.
Por conseguinte, não se revelando nos autos o motivo do crime, não há falar em homicídio qualificado, até porque não há como valorar uma conduta, reputando-a torpe, ou não, se não se sabe o motivo que lhe deu causa.
A testemunha não soube relatar a verdadeira motivação do crime.
A vítima apenas relatou sobre uma dívida relacionada ao serviço prestado para o acusado, não especificando o motivo do não pagamento e que antes dos fatos telefonou para o acusado cobrando o restante do dinheiro. Ou seja, parte da dívida foi devidamente paga, não especificando a recusa à quitação da dívida.
No mesmo sentido, a vítima, quando ouvida na Delegacia, confirmou que nunca houve desentendimento com o acusado.
A acusação de motivo torpe é totalmente descabida no presente caso, pois o desentendimento traz uma grande carga emocional de que é tomado o indivíduo, não pode ser considerado motivo torpe, principalmente, quando se analisa no presente caso o contexto e as circunstâncias do fato.
A defesa verifica na presente oportunidade que a condição de maior punibilidade incluída na acusação não pode ser admitida, por ser claramente improcedente.
A qualificadora imputada ao delito em questão, não merece subsistir, pela manifesta improcedência da mesma. Em respeito a Súmula 64 do TJMG, a Defesa não objetiva a apreciação da qualificadora, tendo em vista ser essa competência do Conselho de Sentença. Todavia, em face da infundada imputação, merece essa qualificadora ser decotada pela Il.ma Juiza Sumariante.
Diante do que foi colhido na fase judicial, ninguém presenciou os fatos narrados na denúncia. Portanto não há o que se comprovar em relação ao motivo torpe.
Diante do exposto, a Defesa pugna pela exclusão da qualificadora, no momento da pronúncia, haja vista a manifesta improcedência da mesma.
2- DOS PEDIDOS:
2.1) diante do exposto, requer sejam reconhecidas as preliminares arguidas, declarando sua
Ante o exposto e por tudo o mais que dos autos consta, são as presentes alegações finais para requerer, no mérito, a impronúncia do acusado diante da ausência de suficientes elementos indicativos de autoria.
2.2 – Diante do exposto, considerando que as provas demonstram, sem sombra de dúvidas, a ausência do animus necandi, a desclassificação crime que não seja da competência do Tribunal do Júri (lesão corporal leve) é medida que direito, na forma do art. 419 do CPP.
2.3 – A Defesa pugna pela exclusão da qualificadora, no momento da pronúncia, haja vista a manifesta improcedência da mesma.
2.4 – Seja concedido ao acusado o Benefício da Assistência Judiciária, uma vez que não possui condições de arcar com as despesas deste processo, sem prejuízo de seu sustento – Lei 1.060/50, já confirmando o estado de pobreza do acusado.
Belo Horizonte, 12 de dezembro de 2018.
XXXXXXX
OAB/MG XXXXX