Análise Jurídica do Artigo 23 da Lei Maria da Penha Garantias Fundamentais de Proteção e Dignidade

Análise Jurídica do Artigo 23 da Lei Maria da Penha: Garantias Fundamentais de Proteção e Dignidade

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Introdução

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) representa um divisor de águas no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. Sua promulgação não apenas atendeu a uma demanda histórica dos movimentos feministas e de direitos humanos, como também foi resposta a recomendações internacionais, notadamente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no emblemático caso de Maria da Penha Maia Fernandes.

Dentro do vasto arcabouço normativo dessa lei, destacam-se as medidas protetivas de urgência, que têm como objetivo assegurar a integridade física, emocional, patrimonial e moral da mulher em situação de violência. O artigo 23 da Lei Maria da Penha, em particular, contempla um conjunto de medidas voltadas diretamente à proteção da ofendida, complementando o artigo 22, que trata das medidas impostas ao agressor.

Este artigo jurídico tem como propósito examinar, de forma técnica, aprofundada e acessível, o conteúdo, a aplicação prática e a importância do artigo 23, evidenciando seu papel no sistema protetivo e sua relevância para a construção de uma sociedade mais justa, segura e igualitária.


I. Estrutura e Finalidade do Artigo 23 da Lei Maria da Penha

O artigo 23 apresenta seis incisos que conferem ao juiz a possibilidade de aplicar medidas de urgência à mulher ofendida, com foco em sua proteção imediata, restabelecimento de direitos e suporte assistencial.

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV – determinar a separação de corpos;
V – determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga;
VI – conceder à ofendida auxílio-aluguel, com valor fixado em função de sua situação de vulnerabilidade social e econômica, por período não superior a 6 (seis) meses.

Esse conjunto de medidas visa preservar a dignidade da mulher em situação de violência, promovendo condições mínimas para sua recuperação e independência, especialmente no contexto de vulnerabilidade social e econômica.


II. A Proteção Integral da Mulher: Princípios Norteadores

A aplicação do artigo 23 está fundamentada em princípios constitucionais e internacionais, tais como:

  • Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88);
  • Princípio da proteção integral (art. 226, §8º, da CF/88);
  • Princípio da não discriminação (Convenção de Belém do Pará);
  • Princípio do acesso à justiça e à assistência social.

O artigo 23 não apenas confere proteção física, mas também apoio psicossocial, habitacional e educacional, reconhecendo que a violência doméstica tem impactos múltiplos e interdependentes.


III. Análise Detalhada dos Incisos do Artigo 23

Inciso I – Encaminhamento a Programas de Proteção ou Atendimento

Este dispositivo autoriza o juiz a determinar o encaminhamento da vítima e seus dependentes a serviços especializados, como:

  • Casas-abrigo;
  • Centros de referência de atendimento à mulher;
  • Programas de apoio psicossocial;
  • Apoio jurídico e de assistência social.

Essa medida é crucial, sobretudo quando a permanência da mulher em seu lar representa risco de revitimização. É, portanto, uma forma de acolhimento emergencial e multidisciplinar, garantindo à vítima condições mínimas de segurança e apoio.

Inciso II – Recondução ao Domicílio

Após o afastamento do agressor (medida prevista no artigo 22, inciso II), a mulher poderá ser reconduzida ao seu lar com segurança, inclusive com o acompanhamento da autoridade policial ou da rede de proteção. Essa medida é importante para preservar o direito de posse e propriedade da ofendida, impedindo que ela seja duplamente penalizada – pela violência e pelo afastamento forçado de sua residência.

Inciso III – Afastamento da Ofendida do Lar

Embora possa parecer contraditório, este inciso visa atender casos em que a permanência da mulher no lar representa risco grave, mesmo com o afastamento do agressor, ou quando ela deseja sair voluntariamente por questões emocionais, psicológicas ou de segurança. A medida não prejudica seus direitos patrimoniais, de guarda dos filhos ou à pensão alimentícia, que devem ser resguardados judicialmente.

Inciso IV – Separação de Corpos

A separação de corpos é uma medida judicial que formaliza a cessação da convivência conjugal, com efeitos jurídicos imediatos, como a suspensão da obrigação de coabitação. Essa medida pode ser decisiva para proteger a mulher de constrangimentos e manipulações emocionais, servindo como etapa preliminar à ação de divórcio ou dissolução da união estável.

Inciso V – Matrícula ou Transferência Escolar dos Dependentes

Incluído pela Lei nº 13.882/2019, esse inciso determina que os filhos da mulher em situação de violência têm direito à matrícula ou transferência para escola próxima ao novo domicílio da família, independentemente da existência de vaga. A medida visa assegurar a continuidade da educação e proteção emocional das crianças, muitas vezes diretamente impactadas pelo ambiente de violência doméstica.

Inciso VI – Auxílio-Aluguel

Outra inovação legislativa, o auxílio-aluguel pode ser concedido por até seis meses, considerando-se a vulnerabilidade socioeconômica da mulher. Essa medida é estratégica para garantir autonomia e independência habitacional, especialmente para aquelas que não têm para onde ir após sair do lar violento.


IV. A Importância Social das Medidas do Artigo 23

O artigo 23 representa um avanço civilizatório ao reconhecer que a proteção da mulher não se limita à punição do agressor, mas inclui:

  • Apoio social e econômico;
  • Preservação dos vínculos familiares;
  • Reintegração habitacional e educacional;
  • Construção da autonomia e da autoestima da vítima.

Ao assegurar esse conjunto de direitos, o artigo 23 fortalece o conceito de justiça restaurativa, priorizando a dignidade da vítima e a quebra do ciclo da violência.


V. Artigo 23 e a Intersetorialidade das Políticas Públicas

A efetividade das medidas do artigo 23 depende da articulação entre os poderes Executivo e Judiciário, além de parcerias com a sociedade civil. É fundamental a existência de:

  • Casas de acolhimento e centros de apoio;
  • Serviços de saúde e assistência social especializados;
  • Acesso rápido à Defensoria Pública e Ministério Público;
  • Escolas públicas preparadas para a reintegração de crianças.

O artigo 23 impõe, de forma implícita, a obrigação do Estado em estruturar políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, com orçamento e planejamento adequados.


VI. Jurisprudência Aplicável

A jurisprudência tem reconhecido o caráter emergencial e prioritário das medidas do artigo 23, mesmo quando inexistem processos cíveis ou penais em andamento. Exemplo:

“É plenamente válida a concessão de auxílio-aluguel à mulher em situação de violência doméstica, com base no art. 23, VI, da Lei Maria da Penha, desde que demonstrada a situação de vulnerabilidade.”
(TJSP – Apelação Cível 1003591-20.2021.8.26.0001)


VII. Desafios para a Efetivação do Artigo 23

Apesar da clareza legal, a aplicação das medidas encontra obstáculos:

  • Falta de estrutura nos municípios para implementar os programas;
  • Resistência de algumas autoridades na concessão de medidas sem “provas robustas”;
  • Ausência de integração entre os sistemas de justiça, saúde, assistência social e educação;
  • Dificuldade no cumprimento da matrícula escolar e no pagamento do auxílio-aluguel.

É urgente o investimento em capacitação de agentes públicos e fortalecimento da rede de proteção, com ênfase em protocolos unificados de atendimento.


VIII. Considerações Finais

O artigo 23 da Lei Maria da Penha é expressão concreta do compromisso do Estado brasileiro com a garantia de uma vida livre de violência para as mulheres. As medidas ali previstas vão além da resposta penal e incluem ações estruturantes de proteção, apoio, reparação e prevenção.

A atuação judicial, quando combinada com políticas públicas eficientes, tem o poder de transformar realidades, restaurar a dignidade da vítima e romper com padrões históricos de opressão.

Proteger a mulher é proteger a sociedade. Valorizar o artigo 23 é reconhecer que justiça se faz também com acolhimento, segurança e inclusão.


FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 23 da Lei Maria da Penha

1. O juiz pode aplicar as medidas do artigo 23 sem processo criminal aberto?

Sim. As medidas protetivas podem ser aplicadas com base em elementos mínimos que indiquem risco, mesmo antes da instauração de inquérito ou processo penal.

2. Como é feito o encaminhamento da mulher a programas de proteção?

O juiz pode determinar o encaminhamento a casas-abrigo, centros de referência, ou programas sociais, em articulação com a rede de apoio local.

3. A mulher perde direitos ao sair do lar?

Não. Se ela for afastada do lar por motivo de segurança, mantém seus direitos sobre bens, guarda dos filhos e alimentos.

4. Qual o objetivo da separação de corpos?

É uma medida formal que suspende a obrigação de coabitação entre o casal, sem a necessidade imediata de divórcio, protegendo a integridade da mulher.

5. Como funciona a matrícula escolar dos filhos da vítima?

A matrícula ou transferência para escola próxima ao novo domicílio deve ser garantida imediatamente, independentemente da existência de vaga.

6. Quem paga o auxílio-aluguel previsto no inciso VI?

O auxílio-aluguel deve ser custeado pelo poder público, conforme regulamentação local e disponibilidade orçamentária, mediante comprovação de vulnerabilidade.

7. Por quanto tempo a vítima pode receber o auxílio-aluguel?

O prazo máximo é de seis meses, podendo ser renovado excepcionalmente, a critério do juiz e conforme disponibilidade dos programas sociais.

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