Introdução
O artigo 9º do Código Penal Militar (CPM), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, ocupa posição central na definição do que constitui crime militar em tempos de paz. Trata-se de um dispositivo que estabelece, de forma minuciosa e articulada, os critérios objetivos e subjetivos que qualificam determinadas condutas como infrações penais militares, seja quando praticadas por militares, por civis, ou contra instituições castrenses.
A importância do artigo 9º transcende a mera definição de competência da Justiça Militar. Ele representa um marco para a proteção da hierarquia e da disciplina — valores fundamentais para a estrutura das Forças Armadas — e delimita a atuação da jurisdição penal militar nos períodos de normalidade institucional, ou seja, fora de situações de guerra ou estado de sítio.
Este artigo jurídico examinará detalhadamente a estrutura do artigo 9º do CPM, suas alterações legislativas mais recentes (em especial pelas Leis nº 13.491/2017 e nº 14.688/2023), os princípios constitucionais envolvidos, a compatibilidade com o direito penal comum e os reflexos práticos da norma. Ao final, será apresentada uma seção de perguntas frequentes (FAQ) sobre o tema.
1. Estrutura Geral do Artigo 9º

O artigo 9º do CPM está estruturado da seguinte forma:
- Inciso I: trata de crimes previstos exclusivamente no CPM ou definidos de modo diverso da legislação penal comum.
- Inciso II: trata de crimes previstos no CPM e também na legislação penal comum, mas praticados em determinadas circunstâncias por militares da ativa.
- Inciso III: trata de crimes praticados por militares da reserva, reformados ou civis, desde que contra instituições militares.
- Parágrafos: estabelecem regras de competência em casos de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, além de regras especiais para as Forças Armadas.
Essa divisão é essencial para compreender o campo de aplicação da lei penal militar em tempos de paz, mantendo a proporcionalidade e o equilíbrio entre os interesses da administração militar e os direitos dos acusados.
2. Inciso I – Crimes Tipicamente Militares
“Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial.”
Este inciso engloba os chamados “crimes propriamente militares” — aqueles cuja previsão existe exclusivamente no CPM, como:
- Desrespeito (art. 298);
- Motim (art. 149);
- Insubordinação (arts. 160 a 166);
- Abandono de posto (art. 195);
- Recusa de obediência (art. 163).
Mesmo que esses crimes sejam cometidos por civis, quando não houver disposição em contrário, são considerados crimes militares e atraem a competência da Justiça Militar.
Esse inciso também se aplica quando há definição distinta entre o CPM e o Código Penal comum, como ocorre em casos de homicídio ou lesão corporal qualificados por circunstâncias específicas do serviço militar.
3. Inciso II – Crimes Comuns com Circunstâncias Militares
Este inciso teve redação significativamente alterada pelas Leis nº 13.491/2017 e nº 14.688/2023, ampliando o espectro de atuação da Justiça Militar sobre crimes que antes eram considerados da esfera civil.
“II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:”
A inclusão da expressão “e os previstos na legislação penal” permite que crimes do Código Penal comum (e de outras leis penais especiais) sejam julgados como crimes militares, desde que preencham determinados requisitos objetivos.
3.1. Hipóteses do Inciso II
a) Por militar da ativa contra militar na mesma situação
Situação clássica: agressão, ameaça ou homicídio entre militares da ativa, dentro ou fora do quartel.
b) Por militar da ativa, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, reformado ou civil
Exemplo: crime cometido em base militar por um militar da ativa contra civil visitante.
c) Por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão militar ou em formatura, mesmo fora do quartel
Atenção especial ao caráter funcional da ação: se estiver atuando oficialmente, mesmo fora do local militar, a conduta poderá configurar crime militar.
d) Por militar, durante manobras ou exercícios, contra militar da reserva, reformado ou civil
Garante que o militar em operações militares simuladas (manobras) responda perante a Justiça Militar.
e) Por militar da ativa contra o patrimônio ou a ordem administrativa militar
Protege diretamente os bens públicos e a estrutura hierárquica da administração militar.
4. Inciso III – Crimes de Civis e Militares da Reserva contra Instituições Militares
“III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares […]”
Mesmo civis ou militares fora da ativa podem ser julgados pela Justiça Militar, desde que a conduta seja contra:
- O patrimônio sob administração militar;
- A ordem administrativa militar;
- Militares da ativa no exercício de funções específicas.
As hipóteses são exaustivamente descritas nas alíneas do inciso III.
4.1. Hipóteses Relevantes
a) Contra o patrimônio ou a ordem administrativa militar
Exemplo: um civil que sabota equipamento militar, ou rouba armas de quartel.
b) Em local militar, contra militar da ativa ou servidor das instituições militares
Protege militares em exercício e funcionários públicos vinculados às Forças Armadas ou à Justiça Militar.
c) Contra militar em formatura ou durante atividades operacionais
Exemplo: ataque de um civil contra militar em acampamento ou em vigília.
d) Fora do local militar, contra militar em missão de garantia da lei e da ordem
Abrange situações como as operações de GLO, atuação militar em calamidades, eleições, etc.

5. Parágrafo 1º – Competência do Tribunal do Júri
“§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.”
Esse parágrafo foi inserido pela Lei nº 13.491/2017, como mecanismo de proteção aos civis. Assim, homicídios dolosos, por exemplo, cometidos por militar da ativa contra civil fora das hipóteses do §2º, são julgados pela Justiça comum (Tribunal do Júri).
A regra reforça a imparcialidade e respeita o princípio do juiz natural, evitando que a Justiça Militar julgue seu próprio membro em casos sensíveis à sociedade civil.
6. Parágrafo 2º – Exceções de Competência: Justiça Militar da União
Este parágrafo estabelece as hipóteses excepcionais nas quais a Justiça Militar da União tem competência para julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis.
6.1. Hipóteses:
I – Cumprimento de atribuições estabelecidas pelo Presidente da República ou Ministro da Defesa
Ex: operações de GLO determinadas pelo Governo Federal.
II – Segurança de instituição militar ou missão militar
Ex: proteção de embaixada militar ou missão humanitária internacional.
III – Atividade de natureza militar, operação de paz, garantia da lei e da ordem ou atribuição subsidiária, conforme:
- Código Brasileiro de Aeronáutica;
- Lei Complementar nº 97/1999 (atribuições das Forças Armadas);
- Código de Processo Penal Militar;
- Código Eleitoral (atuação militar em eleições).
Essa norma especial legitima a atuação da Justiça Militar em casos que envolvam funções institucionais sensíveis, assegurando que os militares sejam julgados por quem compreende o contexto da missão.
7. Impactos das Leis nº 13.491/2017 e nº 14.688/2023
As reformas legislativas ampliaram significativamente a competência da Justiça Militar da União. Antes, apenas crimes previstos no CPM eram considerados militares. A partir da nova redação, qualquer crime previsto na legislação penal comum pode ser tratado como militar, se praticado sob as circunstâncias dos incisos II e III.
Isso gerou críticas de setores da sociedade civil e da doutrina, sob o argumento de “militarização do direito penal”. Por outro lado, os defensores alegam que a ampliação garante proteção institucional às Forças Armadas, especialmente em um cenário de crescente participação em missões de segurança pública.
8. Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais
8.1. Princípio do Juiz Natural
O artigo 9º define com clareza os limites da jurisdição militar, garantindo que os acusados sejam julgados pela autoridade competente.
8.2. Princípio da Legalidade
As condutas previstas como crimes militares estão taxativamente descritas, respeitando o princípio da legalidade penal.
8.3. Princípio da Proporcionalidade
Ao estabelecer que civis só respondem na Justiça Militar quando ofendem diretamente instituições castrenses, o dispositivo preserva a proporcionalidade entre o bem jurídico tutelado e a severidade da jurisdição.
Conclusão

O artigo 9º do Código Penal Militar é uma das colunas de sustentação da jurisdição penal castrense em tempos de paz. Ele delimita com precisão técnica e clareza normativa as hipóteses em que um crime será considerado militar, observando as peculiaridades da vida e da organização militar.
Sua importância se revela não apenas na esfera jurisdicional, mas também na preservação da hierarquia, disciplina e regularidade do funcionamento das Forças Armadas. As recentes alterações legislativas expandiram a abrangência da norma, adaptando-a à realidade de crescente envolvimento das Forças Armadas em operações internas e externas de garantia da ordem.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 9º do Código Penal Militar
1. O que é um crime militar em tempo de paz?
É aquele definido pelo artigo 9º do CPM, podendo envolver condutas típicas militares ou crimes comuns cometidos em contexto militar.
2. Um civil pode ser julgado pela Justiça Militar?
Sim, desde que pratique crime contra instituições militares, conforme o inciso III do artigo 9º.
3. A Justiça Militar julga homicídio cometido por militar contra civil?
Via de regra, não. Se for doloso contra a vida, a competência é do Tribunal do Júri, salvo hipóteses do §2º.
4. Quais crimes comuns podem ser considerados militares?
Crimes como homicídio, lesão corporal, roubo ou estelionato, desde que cometidos sob as circunstâncias dos incisos II ou III do art. 9º.
5. Qual a diferença entre militar da ativa, da reserva e reformado?
Ativa: em serviço regular. Reserva: afastado, mas ainda pode ser convocado. Reformado: aposentado por idade ou invalidez.
6. Um crime cometido durante exercício militar é crime militar?
Sim, se o agente estiver em manobra, acampamento ou outro exercício, o fato pode configurar crime militar.
7. Quem julga um militar das Forças Armadas que comete crime durante GLO?
Se for crime doloso contra a vida, a Justiça Militar da União tem competência, conforme o §2º do artigo 9º.
8. O que mudou com a Lei nº 13.491/2017?
Passou-se a considerar crimes previstos na legislação penal comum como militares, se cometidos sob condições específicas.
9. E a Lei nº 14.688/2023, o que alterou?
Detalhou melhor as hipóteses de crimes militares e reforçou a proteção à ordem administrativa e ao patrimônio militar.
10. Onde posso consultar a versão atualizada do artigo 9º?
No site oficial do Planalto: www.planalto.gov.br