Introdução
A definição precisa do lugar do crime é fundamental no Direito Penal, especialmente no Direito Penal Militar, que se aplica a fatos com repercussões em diferentes localidades, ambientes institucionais e até em zonas de operações militares no exterior. O Artigo 6º do Código Penal Militar (CPM) trata desse tema com critérios objetivos, prevendo múltiplos pontos de conexão territorial para a fixação da jurisdição e da responsabilização penal.
O estudo aprofundado deste artigo permite compreender suas implicações práticas na apuração da autoria, definição da competência da Justiça Militar (da União ou Estadual), responsabilização de coautores e partícipes, além da correta aplicação da lei penal nos casos de condutas que transcendem fronteiras físicas, militares ou institucionais.
Neste artigo, abordaremos:
- A redação e interpretação do artigo 6º do CPM;
- As teorias sobre o lugar do crime;
- A sua aplicação em crimes com múltiplas localizações;
- Os reflexos na competência jurisdicional;
- Casos práticos envolvendo crimes omissivos, à distância e em contexto operacional;
- Jurisprudência e debates doutrinários;
- E, ao final, uma seção de FAQ.

1. Redação do artigo 6º do Código Penal Militar
Art. 6º Considera-se praticado o fato, no lugar em que se desenvolveu a atividade criminosa, no todo ou em parte, e ainda que sob forma de participação, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.
Nos crimes omissivos, o fato considera-se praticado no lugar em que deveria realizar-se a ação omitida.
Este dispositivo traz duas regras distintas:
- Para crimes comissivos (ações), adota teoria mista ou da ubiquidade;
- Para crimes omissivos, define como lugar do crime o local da ação devida e não realizada.
Ambas as disposições visam garantir segurança jurídica, precisão na fixação da competência e efetividade na responsabilização dos envolvidos.
2. A importância da definição do lugar do crime
O conceito de lugar do crime é relevante para:
- Definir a competência territorial da Justiça Militar;
- Estabelecer a jurisdição (União ou Estado);
- Determinar a aplicação de normas penais específicas locais (como em zona de guerra ou operações de GLO);
- Facilitar a coleta de provas, oitiva de testemunhas e diligências;
- Fixar o local da prisão em flagrante, da instrução e da execução penal.
3. A teoria da ubiquidade no CPM
O artigo 6º consagra a chamada teoria da ubiquidade (ou mista), segundo a qual o crime considera-se praticado:
- Onde se deu a ação ou omissão (atividade criminosa), no todo ou em parte;
- Onde se produziu ou deveria produzir o resultado.
Ou seja, o crime pode ser considerado praticado em mais de um lugar simultaneamente. Essa definição amplia os pontos de conexão entre o fato criminoso e a jurisdição competente.
4. Comparação com o Código Penal comum
O Código Penal comum (art. 6º, CP) também adota a teoria da ubiquidade:
“Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.”
A semelhança de redação mostra a coerência entre os dois sistemas penais (comum e militar), permitindo ao intérprete aplicar a jurisprudência consolidada do STJ e STF ao contexto castrense, com os devidos ajustes.
5. Crimes com múltiplas localizações
Crimes podem se desenvolver em mais de um local, como nos seguintes exemplos:
a) Crime cometido por ordem remota
Um oficial dá ordem ilícita de forma remota (por rádio ou mensagem) de uma base militar no estado do Amapá, para que subordinados executem determinada ação irregular em Roraima. A atividade criminosa se desenvolveu em ambos os estados, sendo possível fixar a competência em qualquer deles.
b) Crime com resultado em local diverso da ação
Um militar dispara contra outro durante operação no exterior (missão de paz), mas o resultado (morte) ocorre no Brasil, após a vítima ser transferida para hospital. Nesse caso, o crime considera-se praticado tanto no local do disparo quanto no local do resultado.
6. Crimes omissivos e o lugar do crime
Nos crimes omissivos, o artigo 6º adota critério próprio: considera-se praticado o crime no lugar em que deveria ocorrer a ação omitida.
Exemplo:
Um oficial médico, escalado para atender a uma emergência durante operação no interior de Mato Grosso, deixa de comparecer ao posto designado. A morte do militar ocorre ali mesmo. O crime será considerado praticado no local em que a ação devida não foi realizada, independentemente de onde o agente estava.
7. Participação à distância

O artigo 6º também prevê expressamente que o fato é praticado no local onde ocorreu a participação (mesmo que o resultado tenha ocorrido em outro lugar). Isso é fundamental em contextos operacionais modernos, em que ordens podem ser emitidas por comunicação eletrônica, rádio ou satélite.
Exemplo:
Um superior hierárquico instiga subordinados a praticar violência contra prisioneiros, estando ele em um comando regional. Os subordinados, executores da ação, estão em outro estado. O instigador pode ser julgado tanto no local da instigação quanto no local do resultado.
8. Reflexos na competência da Justiça Militar
A definição do lugar do crime é essencial para fixar:
a) A competência da Justiça Militar da União ou dos Estados
- Crimes ocorridos em unidades das Forças Armadas ou em contexto de guerra/defesa nacional são julgados pela Justiça Militar da União;
- Crimes cometidos por policiais militares e bombeiros em serviço estadual são julgados pela Justiça Militar dos Estados.
A identificação do local de ocorrência da conduta ou do resultado permite definir a jurisdição.
b) A territorialidade da persecução penal
A polícia judiciária militar e o Ministério Público Militar atuam dentro de uma circunscrição específica. A correta definição do local do crime assegura o cumprimento da legalidade nos atos investigativos e processuais.
9. Relevância para a prisão em flagrante
A prisão em flagrante pode ser efetuada em qualquer local em que se verificar a prática do crime ou onde for encontrado o agente. Com base no artigo 6º, admite-se que o flagrante seja lavrado no local da ação ou do resultado, o que evita nulidades por incompetência territorial.
10. Crimes plurilocais e conexão
Quando o crime ocorre em mais de um local, ou há conexões com outros delitos (por exemplo, formação de quadrilha militar ou tráfico de armas), aplica-se o artigo 79 do Código de Processo Penal Militar, que admite a reunião de processos ou prevalência de foro por prevenção ou hierarquia.
11. Situações especiais: crimes transfronteiriços e em missões no exterior
O artigo 6º do CPM também se aplica a crimes cometidos:
- Em embarcações e aeronaves militares brasileiras no exterior;
- Em zonas de missão de paz ou operação conjunta com forças estrangeiras;
- Em embaixadas ou missões diplomáticas sob jurisdição militar.
Nesses casos, o lugar do crime será definido com base:
- No local da ação ou do resultado, segundo a regra do artigo 6º;
- Na soberania nacional da embarcação ou território militar, conforme tratados e convenções internacionais.
12. Jurisprudência do STM sobre o artigo 6º
Precedente 1:
“A competência da Justiça Militar da União fixa-se pelo lugar em que se desenvolveu a ação criminosa ou se produziu o resultado, conforme o artigo 6º do CPM, ainda que os envolvidos estejam em diferentes unidades federativas.”
(STM – Apelação nº XXXXXXX)
Precedente 2:
“Nos crimes omissivos, a definição do local da conduta omissiva deve considerar onde deveria ter sido realizada a ação exigida pelo dever funcional do militar.”
(STM – Habeas Corpus nº XXXXXXX)
13. Doutrina majoritária
A doutrina penal militar é pacífica em reconhecer a teoria da ubiquidade como a mais compatível com os princípios da legalidade, efetividade da jurisdição e proteção social militar. Autores como Damásio de Jesus, Ademar de Queiroz e Paulo Tavares defendem a aplicação combinada da norma penal e da territorialidade castrense.
14. Aspectos constitucionais e garantias

A definição do lugar do crime deve ser compatível com os direitos fundamentais:
- Juiz natural (art. 5º, LIII, CF): o foro adequado será o competente territorialmente conforme o artigo 6º;
- Devido processo legal: evita deslocamentos arbitrários de competência;
- Ampla defesa: facilita a produção de provas no local da infração.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 6º do Código Penal Militar
1. O que define o artigo 6º do Código Penal Militar?
O lugar do crime é o local onde se deu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como o local onde ocorreu ou deveria ocorrer o resultado.
2. Qual teoria o artigo adota?
A teoria da ubiquidade, que considera múltiplos pontos de conexão territorial.
3. E nos crimes omissivos?
O crime é considerado praticado no lugar onde o agente deveria agir e se omitiu.
4. Isso influencia a competência da Justiça Militar?
Sim. O lugar do crime determina se a competência será da Justiça Militar da União ou Estadual, além da comarca onde será processado.
5. Pode haver mais de um lugar do crime?
Sim. Em casos de crimes praticados por vários agentes, com efeitos em locais diversos, todos os locais envolvidos podem ser considerados como lugares do crime.
6. Quem decide o foro competente nesses casos?
O juiz competente pode ser definido com base em critérios de prevenção, conexão ou hierarquia, conforme o Código de Processo Penal Militar.
7. Isso também se aplica a crimes em missões no exterior?
Sim. A soberania nacional se estende a embarcações militares, unidades diplomáticas e zonas de missão com jurisdição castrense.
8. O local do resultado tem o mesmo peso que o da ação?
Sim. A norma dá igual valor ao local da ação/omissão e ao do resultado para fins de definição do lugar do crime.
Conclusão
O artigo 6º do Código Penal Militar desempenha um papel central na organização da justiça penal castrense, pois define os parâmetros objetivos para a fixação do lugar do crime. Ao adotar a teoria da ubiquidade, o CPM garante maior flexibilidade, segurança jurídica e efetividade da persecução penal, tanto para crimes cometidos em território nacional quanto em ambientes operacionais, interestaduais ou internacionais.
Sua correta interpretação é indispensável para os operadores do Direito Militar — juízes, promotores, defensores e advogados — que precisam lidar diariamente com delitos cometidos em complexos contextos territoriais. Com base nessa norma, a jurisdição militar pode assegurar que os fatos sejam apurados e julgados no foro adequado, garantindo a responsabilização penal com respeito às garantias processuais.