Introdução
A segurança jurídica, o princípio da legalidade e a irretroatividade da lei penal mais gravosa são pilares fundamentais do Direito Penal. Entretanto, tais princípios sofrem uma modulação quando se trata da lei penal excepcional ou temporária, conforme previsto no artigo 4º do Código Penal Militar (CPM).
Este dispositivo trata da persistência dos efeitos penais de leis criadas para vigorar em situações extraordinárias — como guerras, crises institucionais, calamidades públicas ou situações de emergência militar. Apesar de seu caráter transitório, tais leis mantêm sua eficácia jurídica em relação aos fatos praticados enquanto estavam em vigor, mesmo depois de cessado o estado que as justificava.
Neste artigo, analisamos detalhadamente a redação, os fundamentos jurídicos, a natureza dessas leis, seus efeitos no tempo, as implicações práticas na Justiça Militar, e a compatibilidade do artigo 4º com os princípios constitucionais. Por fim, apresentamos uma FAQ com as dúvidas mais frequentes sobre o tema.
1. Redação do artigo 4º do Código Penal Militar

Art. 4º A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.
Essa norma trata diretamente da eficácia ultrativa das leis penais excepcionais e temporárias, ou seja, da manutenção de sua validade para julgar fatos praticados durante o período de sua vigência, mesmo que essa vigência tenha se encerrado.
2. Conceito de lei excepcional e lei temporária
Lei excepcional
É aquela editada em razão de circunstâncias extraordinárias, como guerra, insurreições, estado de sítio ou emergência institucional. Sua vigência está atrelada à persistência dessas condições excepcionais.
Exemplos:
- Leis criadas durante estado de guerra;
- Leis penais editadas em contextos de grave ameaça à ordem militar;
- Regramentos específicos para pandemias com impacto nas Forças Armadas.
Lei temporária
É a norma que possui prazo de vigência preestabelecido, independentemente da persistência ou cessação da situação fática que a motivou.
Exemplos:
- Leis que criminalizam determinadas condutas durante um período específico de operações militares;
- Leis que preveem sanções penais mais graves para determinadas infrações durante manobras, treinamentos ou missões.
3. Fundamento da eficácia ultrativa
O artigo 4º do CPM está de acordo com o disposto no artigo 3º do Código Penal comum (CP):
“A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.”
Ambos os dispositivos consagram o princípio da ultratividade penal, que se justifica pelo fato de que o agente, ao praticar a conduta criminosa, estava submetido ao regime jurídico vigente no momento do fato.
4. Compatibilidade com o princípio da legalidade
O artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, estabelece:
“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
O artigo 4º do CPM é plenamente compatível com esse princípio, pois não trata de retroatividade da norma penal mais gravosa, mas sim de aplicação da lei vigente ao tempo da ação ou omissão.
Portanto, a ultratividade da norma excepcional ou temporária não viola o princípio da legalidade. Ao contrário, reforça a ideia de que a lei do tempo do fato é a que deve ser aplicada, desde que a conduta estivesse tipificada como crime naquele momento.
5. A relação entre tempo do crime e tempo da lei

O Código Penal Militar adota, como regra geral, a teoria da atividade (art. 5º do CPM), segundo a qual considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.
Isso significa que, para fins de aplicação da norma penal:
- Se a ação ocorreu durante a vigência da lei temporária ou excepcional, essa é a lei aplicável;
- A cessação da vigência da norma não impede a responsabilização penal do agente que violou a lei durante sua vigência.
6. Efeitos da cessação da vigência da norma excepcional ou temporária
Após cessado o estado excepcional ou esgotado o prazo da norma temporária, a lei deixa de produzir efeitos em relação a fatos futuros, mas continua plenamente aplicável aos fatos passados.
Exemplo:
Suponha que durante uma missão especial, em determinado mês, seja editada uma lei temporária que criminaliza o uso de determinados equipamentos por soldados, sob pena de detenção. Se um militar descumprir essa norma durante o período de vigência, será processado e julgado com base nessa lei, mesmo que ela já tenha sido revogada ao tempo do julgamento.
7. Implicações para a Justiça Militar
A Justiça Militar é, por excelência, uma jurisdição especializada, voltada à preservação da hierarquia, disciplina e segurança nacional. A possibilidade de editar leis penais excepcionais ou temporárias reflete a necessidade de adaptação normativa rápida frente a crises militares, operações especiais ou contextos emergenciais.
Situações típicas que justificam a edição de normas excepcionais:
- Operações militares no exterior;
- Conflitos armados internos ou insurgências;
- Garantia da Lei e da Ordem (GLO);
- Epidemias ou pandemias com impacto na logística militar.
Nesses cenários, a criação de normas penais com vigência temporária pode ser essencial para manter a ordem militar, e sua eficácia após o fim da emergência é garantida pelo artigo 4º.
8. A natureza jurídica da ultratividade
A doutrina majoritária entende que o artigo 4º consagra uma ultratividade especial da norma penal — ou seja, a manutenção da eficácia da lei para os fatos praticados sob sua vigência, mesmo após sua revogação ou cessação da vigência.
Essa ultratividade, porém, não deve ser confundida com retroatividade da norma penal mais grave, que é vedada pelo Direito Penal moderno.
9. Críticas e controvérsias
a) Potencial desuso da norma
Na prática, são raros os exemplos de aplicação de leis penais excepcionais no Brasil. Isso gera discussões sobre a real necessidade de se manter tal dispositivo.
b) Risco de arbitrariedades
A criação de leis penais temporárias ou excepcionais pode, eventualmente, ser usada como instrumento de perseguição ou repressão política, se não houver controle democrático sobre sua edição e vigência.
c) Ausência de controle constitucional específico
O CPM não prevê mecanismos expressos de controle de constitucionalidade ou revisão periódica dessas normas, o que pode comprometer seu alinhamento com os direitos fundamentais.
10. A importância do artigo 4º para a segurança jurídica
Apesar das críticas, o artigo 4º possui valor estratégico:
- Garante que o agente responderá pelos atos praticados sob a vigência da lei;
- Evita a impunidade em casos em que a norma penal temporária é revogada antes do julgamento;
- Reforça o princípio da irretroatividade in malam partem, pois a norma deixa de ser aplicada para fatos futuros.
11. Comparação com o Direito Penal comum
Tanto o Código Penal comum quanto o Código Penal Militar contêm dispositivos semelhantes. No entanto, no contexto militar, a necessidade de disciplina, ordem e prontidão torna a possibilidade de edição de leis excepcionais ainda mais justificada.
A doutrina castrense, ao comentar o artigo 4º do CPM, o considera uma salvaguarda institucional para o cumprimento de missões críticas e situações extremas.
12. Aplicações práticas e casos hipotéticos

Exemplo 1 – Lei temporária durante operação de GLO
Durante operação de Garantia da Lei e da Ordem no Rio de Janeiro, é editada lei temporária que proíbe expressamente militares de utilizar redes sociais enquanto em serviço operacional, sob pena de detenção. Um militar descumpre a norma em abril, sendo identificado em junho, quando a lei já havia perdido vigência. O artigo 4º garante que ele responderá penalmente pela conduta, pois praticou o fato enquanto a norma estava em vigor.
Exemplo 2 – Lei excepcional em situação de guerra
Durante um conflito armado internacional, o Congresso Nacional aprova uma lei excepcional criminalizando o abandono de posto em áreas de combate, com penas agravadas. Um militar infringe essa norma, mas o conflito cessa antes do início do processo judicial. Mesmo com o fim da guerra, a responsabilidade penal permanece.
13. Interação com outras normas constitucionais
A aplicação da norma excepcional deve sempre respeitar os direitos fundamentais do acusado, mesmo em tempos de crise. Isso inclui:
- Direito ao contraditório e ampla defesa;
- Devido processo legal;
- Direito ao recurso;
- Proibição de penas cruéis ou desumanas.
O artigo 4º não autoriza retroatividade penal prejudicial e não pode ser utilizado como mecanismo de exceção permanente.
14. Controle de constitucionalidade e fiscalização democrática
Para evitar abusos, a edição e aplicação de leis penais excepcionais ou temporárias devem ser:
- Limitadas no tempo;
- Justificadas por situação objetiva de emergência;
- Submetidas ao controle do Poder Judiciário, inclusive em sede de habeas corpus e ações diretas de inconstitucionalidade.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 4º do Código Penal Militar
1. O que são leis penais excepcionais ou temporárias?
São normas editadas para vigorar apenas em situações especiais (como guerra ou calamidade) ou por prazo determinado. Têm vigência limitada, mas continuam válidas para os fatos ocorridos durante sua vigência.
2. A lei penal temporária continua valendo após seu prazo expirar?
Para novos fatos, não. Mas ela continua válida para julgar fatos ocorridos durante sua vigência.
3. Isso não viola a Constituição?
Não. O artigo 4º está de acordo com o princípio da legalidade, pois aplica a lei que estava vigente no momento da conduta.
4. Um militar pode ser julgado por uma lei que já foi revogada?
Sim, desde que ele tenha praticado o fato quando a lei ainda estava em vigor.
5. E se a nova lei for mais branda? Ela substitui a anterior?
Não no caso de leis excepcionais ou temporárias. Elas continuam a ser aplicadas aos fatos do período em que estavam vigentes, mesmo que uma nova lei posterior seja mais favorável.
6. A Justiça Militar aplica esse tipo de norma com frequência?
É raro, mas possível. A aplicação depende da existência de contextos extraordinários ou temporários.
7. Há diferença entre a lei penal temporária e a lei penal comum?
Sim. A lei penal temporária tem vigência definida e eficácia ultrativa, mesmo após sua expiração.
8. Como saber se uma norma é temporária ou excepcional?
Geralmente isso está previsto no próprio texto da lei, que estabelece seu prazo de vigência ou sua dependência de fatos extraordinários.
Conclusão
O artigo 4º do Código Penal Militar desempenha papel fundamental na proteção da ordem jurídica em tempos de crise. Ele garante que a lei penal excepcional ou temporária mantenha sua eficácia em relação aos fatos praticados durante sua vigência, mesmo após cessadas as circunstâncias que a justificaram.
Longe de representar uma exceção arbitrária, essa norma é um instrumento legítimo de preservação da segurança jurídica, da autoridade estatal e da justiça penal. No contexto militar, onde disciplina e prontidão são valores constitutivos, a existência de um mecanismo como o previsto no artigo 4º é não apenas legítima, mas essencial.