Introdução
O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica constitui uma das mais importantes garantias individuais no Direito Penal. Essa garantia também está prevista de forma expressa no Código Penal Militar (CPM), por meio do artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. O dispositivo consagra a chamada “retroatividade da lex mitior”, conferindo ao réu ou condenado o direito de ser beneficiado por norma penal posterior mais favorável.
Este artigo se propõe a examinar com profundidade os aspectos legais, doutrinários e práticos do artigo 2º do CPM, destacando a sua importância no contexto do Direito Penal Militar e sua aplicação nas relações jurídico-penais envolvendo os membros das Forças Armadas e assemelhados.
1. A redação do artigo 2º do Código Penal Militar

O artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.001/1969 estabelece:
Art. 2º Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.
§ 1º A lei posterior que, de qualquer outro modo, favorece o agente, aplica-se retroativamente, ainda quando já tenha sobrevindo sentença condenatória irrecorrível.
§ 2º Para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato.
2. Fundamentos constitucionais e princípios relacionados
O artigo 2º do CPM está em consonância com os princípios constitucionais fundamentais que regem o Direito Penal. Em especial, destaca-se:
- Princípio da legalidade penal (art. 5º, XXXIX, da CF): Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
- Princípio da retroatividade da lei penal mais benigna (art. 5º, XL, da CF): A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
O Código Penal Militar, mesmo sendo uma legislação especial, não se desvincula dos princípios constitucionais. Assim, a retroatividade da norma penal mais benéfica se impõe como cláusula pétrea de garantia individual.
3. Supressão de incriminação (caput do artigo 2º)
A primeira parte do artigo 2º trata da chamada abolitio criminis, ou seja, quando uma conduta deixa de ser considerada criminosa por força de uma nova lei. Neste caso, extingue-se automaticamente a punibilidade do agente.
Exemplo prático:
Imagine-se que uma norma penal militar previa como crime o uso de determinado tipo de armamento em situação específica. Se a nova lei revoga essa tipificação, todo e qualquer processo ou execução penal baseada nesse tipo penal deve ser extinta, e seus efeitos penais anulados.
Efeitos:
- Extinção da punibilidade;
- Cessação da execução penal;
- Reabilitação automática dos efeitos penais da sentença condenatória (não inclui efeitos civis ou administrativos, que podem persistir).
4. Retroatividade da lei penal mais benéfica (§1º)
O §1º trata da hipótese em que não há abolitio criminis, mas a nova lei penal, de alguma forma, favorece o réu. Trata-se da consagração da retroatividade da lex mitior.
Aplicabilidade mesmo após o trânsito em julgado
É importante ressaltar que o benefício deve ser concedido mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, mesmo quando não há mais possibilidade de recurso. Essa previsão rompe, em parte, com o dogma da coisa julgada, conferindo prevalência ao princípio da dignidade da pessoa humana e à ideia de justiça material.
Exemplos de aplicação:
- Redução da pena mínima ou máxima cominada;
- Alteração do regime de cumprimento da pena;
- Mudança nos critérios de culpabilidade ou atenuantes;
- Transformação de pena privativa de liberdade em restritiva de direitos.
5. Critério da comparação integral de normas (§2º)
O §2º do artigo 2º do CPM estabelece que, para se reconhecer qual norma é mais benéfica, deve-se considerar cada uma das leis em sua integralidade, ou seja, não se pode “mesclar” partes favoráveis de uma norma com partes de outra.
Doutrina dominante
A doutrina majoritária considera que esse critério evita interpretações parciais e manipuladoras, que poderiam favorecer indevidamente ou prejudicar o réu, com base em uma “colcha de retalhos” legislativa.
Análise conjunta:
- Considera-se a estrutura completa da norma;
- Avalia-se o tipo penal, penas previstas, causas de aumento ou diminuição, condições de extinção da punibilidade, entre outros elementos.
6. Comparativo entre o CPM e o Código Penal comum

O artigo 2º do Código Penal comum (Decreto-Lei nº 2.848/1940) possui redação muito semelhante, e os princípios nele contidos também são aplicáveis ao Direito Penal Militar. No entanto, há peculiaridades no contexto castrense que justificam um tratamento interpretativo mais rigoroso, sobretudo diante das especificidades da hierarquia e disciplina militares.
7. Limites da retroatividade
A retroatividade da norma mais benéfica não é absoluta. Há situações em que ela não se aplica:
- Leis temporárias e excepcionais: Como prevê o art. 3º do Código Penal comum, as leis excepcionais (vigentes em estado de sítio ou calamidade, por exemplo) continuam a produzir efeitos mesmo após a cessação de sua vigência, se mais severas;
- Efeitos extrapenais: Os efeitos civis, administrativos e disciplinares da condenação penal podem subsistir mesmo após a abolitio criminis, conforme o caso.
8. Jurisprudência sobre o tema
Superior Tribunal Militar (STM)
O STM tem reiteradamente reconhecido o direito à aplicação retroativa da norma penal mais benéfica, inclusive com revisões de penas já em execução.
Exemplo de acórdão:
“É de rigor a aplicação retroativa da lei penal mais benéfica, ainda que a sentença condenatória tenha transitado em julgado, em respeito ao art. 2º, §1º, do CPM e ao art. 5º, XL, da Constituição Federal.” (STM, Apelação nº XXXXXXXX)
9. A importância da retroatividade benigna para a Justiça Militar
Garantia de justiça material
A aplicação da retroatividade benigna representa uma forma de garantir a equidade e a dignidade do jurisdicionado militar, em especial quando se considera o contexto de rigidez normativa das instituições castrenses.
Concretização de direitos fundamentais
É por meio da retroatividade que o Direito Penal Militar se aproxima dos preceitos do Estado Democrático de Direito, afastando-se de um modelo meramente retributivo e aproximando-se de um modelo garantista.
10. Aplicações práticas no cotidiano jurídico-militar
- Advocacia militar: O advogado deve estar sempre atento às alterações legislativas penais e avaliar, caso a caso, os impactos sobre seus clientes;
- Ministério Público Militar: Atua tanto na repressão quanto na promoção da justiça, podendo, inclusive, requerer de ofício a aplicação da lei mais benéfica;
- Judiciário militar: Tem o dever de reavaliar penas, mesmo de ofício, quando houver mudança legislativa benéfica.
11. Desafios e perspectivas

Desatualização legislativa
Um dos principais desafios da aplicação do artigo 2º reside na morosidade do legislador em atualizar a legislação penal militar, o que torna menos frequente a ocorrência de leis novas mais benéficas.
Modernização e reforma
Discute-se atualmente a necessidade de reformulação do Código Penal Militar para adequá-lo aos padrões constitucionais contemporâneos e aos direitos fundamentais, o que poderá ampliar as hipóteses de retroatividade benigna.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 2º do Código Penal Militar
1. O que significa o artigo 2º do CPM?
O artigo 2º trata da abolitio criminis e da retroatividade da lei penal mais benéfica, ou seja, garante que o réu não seja punido por conduta que deixou de ser crime ou que receba o tratamento mais favorável da nova lei.
2. Esse artigo também se aplica depois do trânsito em julgado?
Sim. O §1º garante que a norma penal mais favorável se aplica mesmo que a sentença condenatória já tenha transitado em julgado.
3. Como o juiz decide qual lei é mais benéfica?
O juiz deve comparar cada uma das leis no seu conjunto, conforme o §2º. Não se pode mesclar partes favoráveis de diferentes leis.
4. A retroatividade benéfica é automática?
Em tese, sim. Mas, na prática, depende de provocação pelas partes ou do próprio Judiciário, que pode reconhecê-la de ofício.
5. Os efeitos civis da condenação também são anulados com a nova lei?
Não necessariamente. A cessação automática prevista no caput se refere aos efeitos penais. Efeitos civis e administrativos devem ser analisados caso a caso.
6. Esse princípio também vale para militares temporários ou reservistas?
Sim. Desde que estejam submetidos à jurisdição militar no momento do fato ou da aplicação da lei, têm direito ao mesmo benefício.
7. Como o advogado deve proceder diante de uma nova lei penal benéfica?
Deve peticionar nos autos da execução penal ou propor revisão criminal, solicitando a aplicação da nova norma mais favorável.
8. A retroatividade também vale para medidas de segurança?
Sim, desde que a nova norma beneficie o agente. A jurisprudência entende que o benefício alcança também medidas de natureza penal substitutiva.
Considerações Finais
O artigo 2º do Código Penal Militar consagra um dos pilares do Direito Penal contemporâneo: o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Ao prever tanto a extinção da punibilidade em caso de abolitio criminis, quanto a retroatividade ampla de normas mais favoráveis, mesmo após o trânsito em julgado, o dispositivo reforça o compromisso do Estado com a justiça, a proporcionalidade e os direitos fundamentais dos militares.
Sua correta interpretação e aplicação exigem sensibilidade jurídica, profundo conhecimento legislativo e comprometimento com os valores do Estado Democrático de Direito. Em tempos de redemocratização e atualização dos sistemas jurídicos, a plena eficácia do artigo 2º do CPM é não apenas desejável, mas imprescindível.