Introdução
O Código de Processo Penal brasileiro (CPP), instituído pelo Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, estabelece as normas fundamentais que orientam a persecução penal no país. Dentre essas normas, o artigo 5º ocupa posição de especial relevância, uma vez que disciplina as diversas formas de instauração do inquérito policial nos crimes de ação pública, determinando os legitimados a provocar o início da investigação criminal formal.
O inquérito policial, como instrumento preparatório da ação penal, representa a materialização do poder-dever do Estado de investigar infrações penais, constituindo-se em procedimento administrativo preliminar que visa à colheita de elementos informativos sobre a autoria e materialidade de crimes. Sua instauração marca o início formal da persecução penal em seu aspecto investigativo, justificando a importância de se compreender com profundidade os mecanismos previstos para seu desencadeamento.
O presente artigo objetiva realizar uma análise jurídica abrangente do artigo 5º do Código de Processo Penal, explorando suas nuances, suas implicações práticas e sua relevância no contexto do sistema processual penal brasileiro. Pretende-se, com isso, contribuir para uma compreensão mais aprofundada desse dispositivo legal, que, apesar de sua aparente simplicidade, encerra complexidades que merecem detido estudo.
Contextualização Histórica do Artigo 5º do CPP

A compreensão adequada do artigo 5º do Código de Processo Penal demanda uma breve incursão em seu contexto histórico. O CPP brasileiro foi promulgado em 1941, durante o período do Estado Novo, sob a influência do Código de Processo Penal italiano de 1930 (Código Rocco), que, por sua vez, possuía caráter nitidamente autoritário, alinhado ao regime fascista então vigente na Itália.
Nesse cenário histórico, o inquérito policial foi concebido como um procedimento fortemente marcado pela inquisitoriedade, com amplos poderes conferidos à autoridade policial e limitada participação do investigado. As formas de instauração do inquérito previstas no artigo 5º refletiam essa concepção, priorizando a atuação de ofício da autoridade policial e a provocação por órgãos estatais.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e a consolidação do Estado Democrático de Direito, o artigo 5º do CPP passou por um processo de releitura e reinterpretação à luz dos princípios constitucionais, especialmente o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a dignidade da pessoa humana. Essa releitura não modificou o texto em si, mas alterou significativamente sua compreensão e aplicação prática.
Essa evolução histórico-interpretativa do artigo 5º do CPP demonstra a capacidade de adaptação do dispositivo às transformações sociais, políticas e jurídicas do país, mantendo sua relevância mesmo após oito décadas de sua promulgação. Compreender essa trajetória é fundamental para uma adequada análise de seu conteúdo normativo na atualidade.
Análise Estrutural do Artigo 5º do CPP
O artigo 5º do Código de Processo Penal apresenta estrutura complexa, composta por um caput, dois incisos e cinco parágrafos, cada qual disciplinando aspectos específicos da instauração do inquérito policial. A seguir, analisaremos detalhadamente cada um desses elementos.
Caput e Incisos: As Formas de Instauração do Inquérito Policial
O caput do artigo 5º estabelece que “nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado”, delimitando, desde logo, o âmbito de aplicação do dispositivo: os crimes de ação penal pública, seja incondicionada ou condicionada. Em seguida, os incisos I e II elencam as formas pelas quais o inquérito policial pode ser iniciado:
De ofício (inciso I): Trata-se da instauração espontânea do inquérito pela própria autoridade policial, independentemente de provocação externa, quando toma conhecimento da prática de infração penal de ação pública. Esta modalidade manifesta o princípio da obrigatoriedade que rege a persecução penal nos crimes de ação pública, impondo à autoridade policial o dever de instaurar o inquérito sempre que houver indícios da prática criminosa.
Mediante provocação (inciso II): Nesta modalidade, o inquérito é instaurado a partir da provocação de determinados atores, a saber: a) Por requisição da autoridade judiciária: Embora não seja comum, o juiz pode, ao tomar conhecimento de fato criminoso nos autos de processo sob sua jurisdição, requisitar a instauração de inquérito policial. Esta atuação deve ser excepcional, em respeito ao sistema acusatório. b) Por requisição do Ministério Público: Como titular da ação penal pública, o Ministério Público pode requisitar a instauração de inquérito quando tomar conhecimento de infração penal. Esta requisição tem caráter obrigatório para a autoridade policial, diferenciando-se do mero requerimento. c) Por requerimento do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo: A vítima ou seu representante legal pode requererà autoridade policial a instauração do inquérito. Diferentemente da requisição, o requerimento não vincula a autoridade policial, que poderá indeferi-lo se entender ausentes os pressupostos para a investigação.
Os Parágrafos do Artigo 5º: Desdobramentos Procedimentais
Os cinco parágrafos do artigo 5º complementam e detalham o regime jurídico da instauração do inquérito policial, abordando aspectos procedimentais específicos:
§ 1º – Requisitos do Requerimento do Ofendido
O § 1º estabelece os requisitos formais que devem constar no requerimento apresentado pelo ofendido para a instauração do inquérito policial. São eles:
a) Narração do fato com todas as circunstâncias: Exige-se uma descrição detalhada do evento criminoso, incluindo data, horário, local, modo de execução e demais elementos que possam auxiliar na investigação.
b) Individualização do indiciado ou seus sinais característicos: Deve-se identificar o suposto autor do crime, fornecendo seu nome completo, documentos, endereço ou, quando não for possível a identificação completa, suas características físicas, vestimentas ou quaisquer outros elementos que possam contribuir para sua identificação. Alternativamente, o requerente deve explicitar os motivos que impossibilitam tal individualização.
c) Nomeação das testemunhas: É necessário indicar as pessoas que presenciaram o fato ou que possam contribuir para o esclarecimento do crime, informando suas profissões e residências, facilitando assim sua localização para depoimento.
É importante notar que a expressão “sempre que possível” contida no dispositivo indica que esses requisitos não são absolutos. Sua ausência não impede necessariamente a instauração do inquérito, especialmente quando justificada pela impossibilidade objetiva de fornecimento de tais informações.
§ 2º – Recurso Administrativo Contra o Indeferimento
O § 2º prevê a possibilidade de recurso administrativo contra o despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito policial. Este recurso deve ser dirigido ao chefe de Polícia, que, no atual ordenamento jurídico, corresponde ao Delegado-Geral de Polícia Civil, no âmbito estadual, ou ao Diretor-Geral da Polícia Federal, no âmbito federal.
Este dispositivo representa importante garantia ao ofendido, evitando que a discricionariedade da autoridade policial local se converta em arbitrariedade. O recurso permite uma reavaliação da decisão de indeferimento por uma autoridade hierarquicamente superior, que poderá determinar a instauração do inquérito caso constate a presença dos requisitos legais.
É relevante destacar que este recurso administrativo não exclui a possibilidade de o ofendido buscar outras vias para a persecução penal, como a representação direta ao Ministério Público, que pode requisitar a instauração do inquérito ou, se entender presentes elementos suficientes, oferecer denúncia independentemente do inquérito policial.
§ 3º – Notícia-crime de Qualquer do Povo (Delatio Criminis)
O § 3º consagra a chamada “delatio criminis”, ao estabelecer que qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá comunicá-la à autoridade policial, verbalmente ou por escrito. Recebida a comunicação, a autoridade policial deverá verificar a procedência das informações e, constatada esta, mandará instaurar inquérito.
Este dispositivo materializa o interesse público na persecução penal e o papel colaborativo da sociedade na prevenção e repressão à criminalidade. A “delatio criminis” diferencia-se do requerimento do ofendido (inciso II) por não demandar legitimidade específica – qualquer pessoa pode realizá-la – e por não estabelecer requisitos formais rígidos, podendo ser feita inclusive verbalmente.
A verificação de procedência das informações mencionada no dispositivo consiste em uma apuração preliminar, sumária, visando constatar a verossimilhança da notícia-crime e a existência de justa causa para a instauração formal do inquérito. Esta verificação prévia evita a instauração de investigações infundadas, baseadas em comunicações falsas ou manifestamente improcedentes.
§ 4º – Inquérito nos Crimes de Ação Pública Condicionada
O § 4º trata especificamente dos crimes de ação pública condicionada à representação, estabelecendo que, nesses casos, o inquérito não poderá ser iniciado sem a representação do ofendido ou de seu representante legal.
A representação constitui condição de procedibilidade tanto para o inquérito quanto para a ação penal, e consiste na manifestação de vontade do ofendido ou de seu representante legal no sentido de autorizar a persecução penal. Trata-se de um requisito específico para determinados crimes (como ameaça, lesão corporal leve, etc.), nos quais o legislador entendeu que o interesse da vítima na persecução penal deve prevalecer sobre o interesse estatal.
É importante destacar que, mesmo nos crimes de ação pública condicionada, uma vez oferecida a representação, a persecução penal se desenvolve conforme o princípio da obrigatoriedade, não podendo ser interrompidapela simples desistência da vítima, salvo nas hipóteses excepcionais previstas em lei, como nos casos abrangidos pela Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais).
§ 5º – Inquérito nos Crimes de Ação Privada
Por fim, o § 5º disciplina a instauração do inquérito policial nos crimes de ação privada, estabelecendo que, nesses casos, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la, ou seja, o ofendido ou seu representante legal.
Nos crimes de ação privada, como calúnia, difamação e injúria, o interesse na persecução penal é predominantemente privado, razão pela qual se confere ao ofendido não apenas o poder de iniciativa da investigação, mas também a titularidade da ação penal. O inquérito, nesses casos, assume caráter facultativo, servindo como instrumento para auxiliar o ofendido na coleta de elementos que fundamentarão eventual queixa-crime.
É relevante observar que, diferentemente do que ocorre nos crimes de ação pública condicionada, nos crimes de ação privada o princípio da oportunidade prevalece sobre o da obrigatoriedade, permitindo-se ao ofendido, inclusive, desistir da investigação a qualquer tempo.
Análise Crítica da Aplicação do Artigo 5º do CPP na Prática Jurídica

A aplicação prática do artigo 5º do CPP tem suscitado relevantes debates doutrinários e jurisprudenciais, especialmente em face das transformações experimentadas pelo sistema processual penal brasileiro nas últimas décadas. Algumas questões merecem destaque:
A Instauração de Ofício e o Sistema Acusatório
A possibilidade de instauração de ofício do inquérito policial pela autoridade policial, prevista no inciso I do artigo 5º, tem sido objeto de críticas por parte da doutrina que defende um sistema acusatório mais puro. Argumenta-se que a iniciativa investigativa espontânea poderia comprometer a imparcialidade da investigação, gerando um comprometimento psicológico da autoridade policial com a confirmação da hipótese inicial.
Entretanto, a instauração de ofício continua sendo amplamente aceita e aplicada, por se entender que o inquérito policial, como procedimento administrativo preparatório, não se submete à mesma rigidez do processo judicial quanto à separação de funções. Além disso, a atuação de ofício da autoridade policial é vista como manifestação do princípio da obrigatoriedade da ação penal e da indisponibilidade do interesse público na persecução criminal.
A Verificação de Procedência das Informações
A exigência de verificação de procedência das informações antes da instauração formal do inquérito, prevista no § 3º, tem gerado discussões sobre sua natureza jurídica e limites. Questiona-se se essa verificação prévia configuraria uma espécie de “pré-inquérito” ou se seria mera diligência preliminar, sem caráter investigativo.
A jurisprudência tem entendido que a verificação de procedência é procedimento sumário e preliminar, destinado apenas a constatar a verossimilhança da notícia-crime, não se confundindo com o inquérito propriamente dito. Nessa etapa, não se admitem medidas invasivas ou constritivas de direitos, que demandam a instauração formal do inquérito e, em muitos casos, autorização judicial.
O Valor Probatório do Inquérito e o Contraditório
Embora o artigo 5º trate apenas da instauração do inquérito, sua compreensão não pode ser dissociada das discussões sobre o valor probatório dos elementos colhidos durante a investigação e a incidência do contraditório nessa fase preliminar. A jurisprudência dos tribunais superiores firmou entendimento de que o inquérito policial possui valor informativo e não probatório, servindo como base para a formação da opinio delicti do titular da ação penal, mas não para fundamentar, isoladamente, uma condenação criminal.
Esse entendimento relaciona-se diretamente com as formas de instauração do inquérito previstas no artigo 5º, na medida em que reforça o caráter preliminar e informativo da investigação policial, independentemente de sua origem (de ofício, por requisição ou por requerimento).
A Relevância do Artigo 5º do CPP para o Sistema Processual Penal Brasileiro
O artigo 5º do Código de Processo Penal desempenha papel fundamental no sistema processual penal brasileiro, por diversas razões:
Delimitação da Competência Investigativa
Ao estabelecer as formas de instauração do inquérito policial, o artigo 5º contribui para a delimitação da competência investigativa das autoridades policiais, estabelecendo claramente em quais situações e mediante quais requisitos pode-se iniciar uma investigação formal. Essa delimitação é essencial para a segurança jurídica e para evitar abusos no exercício do poder investigativo estatal.
Materialização do Princípio da Obrigatoriedade
O artigo 5º materializa o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, ao impor à autoridade policial o dever de instaurar o inquérito sempre que tomar conhecimento da prática de infração penal de ação pública, seja por iniciativa própria (de ofício), por requisição ou por comunicação de terceiros. Essa obrigatoriedade reflete a indisponibilidade do interesse público na persecução criminal e a necessidade de tratamento isonômico das infrações penais.
Equilíbrio entre Eficiência Investigativa e Garantias Individuais
O dispositivo estabelece um equilíbrio entre a necessidade de eficiência investigativa e o respeito às garantias individuais, ao prever diferentes formas de instauração do inquérito e mecanismos de controle, como o recurso administrativo contra o indeferimento do requerimento de abertura de inquérito. Esse equilíbrio é essencial em um Estado Democrático de Direito, que deve conciliar a proteção social com o respeito aos direitos fundamentais.
Participação da Vítima e da Sociedade na Persecução Penal
Ao prever a possibilidade de instauração do inquérito por requerimento do ofendido (inciso II) e por comunicação de qualquer pessoa do povo (§ 3º), o artigo 5º valoriza a participação da vítima e da sociedade na persecução penal, reconhecendo a dimensão social do crime e a importância da colaboração cidadã no enfrentamento à criminalidade.
Diferenciação entre Regimes de Persecução Penal
O artigo 5º e seus parágrafos estabelecem claramente as diferenças entre os regimes de persecução penal aplicáveis aos crimes de ação pública incondicionada, de ação pública condicionada e de ação privada, conferindo tratamento adequado a cada categoria conforme a natureza do bem jurídico protegido e a relevância do interesse da vítima. Essa diferenciação é fundamental para a adequada tutela penal dos diversos bens jurídicos, respeitando suas particularidades.
Desafios Contemporâneos na Aplicação do Artigo 5º do CPP
Apesar de sua longevidade, o artigo 5º do CPP enfrenta desafios contemporâneos que demandam reflexão e, possivelmente, adaptações interpretativas:
Inquérito Policial Eletrônico
A crescente digitalização dos procedimentos policiais e judiciais, com a implementação do inquérito policial eletrônico, impõe novos desafios à interpretação do artigo 5º, especialmente quanto às formalidades do requerimento de instauração (§ 1º) e à comunicação verbal de infrações penais (§ 3º). A adaptação dessas previsões ao ambiente digital deve ser feita de modo a preservar a essência dos dispositivos, garantindo acessibilidade e segurança jurídica.
Investigações Defensivas
O desenvolvimento das chamadas “investigações defensivas”, realizadas pela defesa do investigado, paralela ou complementarmente ao inquérito policial, suscita questionamentos sobre a exclusividade estatal na investigação criminal e sobre a possibilidade de incorporação desses elementos ao inquérito oficial. Embora o artigo 5º não trate diretamente dessa modalidade investigativa, sua interpretação sistemática com princípios constitucionais, como a ampla defesa, sugere a viabilidade de sua admissão no sistema processual brasileiro.
Meios Alternativos de Resolução de Conflitos Penais
A expansão dos meios alternativos de resolução de conflitos penais, como a transação penal, a suspensão condicional do processo e os acordos de não persecução penal, impacta a aplicação do artigo 5º, na medida em que propõe soluções consensuais que podem ocorrer antes mesmo da instauração formal do inquérito ou durante seu curso. Esses mecanismos representam mitigações ao princípio da obrigatoriedade, exigindo uma releitura da rigidez tradicionalmente atribuída à persecução penal.
Investigações em Crimes Cibernéticos
Os crimes praticados por meio da internet apresentam desafios particulares à instauração e condução do inquérito policial, especialmente quanto à determinação da circunscrição competente e à verificação de procedência das informações. A natureza transnacional e a volatilidade das evidências digitais demandam procedimentos ágeis e específicos, nem sempre compatíveis com a rigidez formal do inquérito tradicional.
Perspectivas de Reforma Legislativa
A longevidade do Código de Processo Penal brasileiro não implica imutabilidade. Pelo contrário, discussões sobre sua reforma têm sido constantes, incluindo propostas de modificação do sistema de investigação criminal. Algumas propostas específicas relacionadas ao artigo 5º merecem análise:
Ampliação do Controle Externo da Investigação
Propostas de reforma têm sugerido a ampliação do controle externo da investigação policial, fortalecendo o papel do Ministério Público na fiscalização e orientação da atividade investigativa. Essa ampliação afetaria diretamente a interpretação do artigo 5º, especialmente quanto à discricionariedade da autoridade policial na instauração de ofício e na verificação de procedência das informações.
Juiz de Garantias
A implementação do juiz de garantias, prevista na Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e atualmente suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, impactaria significativamente a dinâmica investigativa, com reflexos diretos sobre as formas de instauração do inquérito previstas no artigo 5º. A figura do juiz de garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos individuais, poderia alterar a natureza da relação entre autoridade policial, Ministério Público e Poder Judiciário na fase pré-processual.
Simplificação da Fase Investigativa
Várias propostas de reforma do CPP têm sugerido a simplificação da fase investigativa, com procedimentos mais céleres e menos burocráticos. Essas propostas poderiam modificar substancialmente o artigo 5º, especialmente quanto aos requisitos formais para a instauração do inquérito e à tramitação dos requerimentos.
Conclusão

O artigo 5º do Código de Processo Penal brasileiro, com seus incisos e parágrafos, constitui pilar fundamental do sistema de investigação criminal no país. Ao estabelecer as formas de instauração do inquérito policial, o dispositivo delimita a atuação estatal na persecução penal preliminar, equilibrando eficiência investigativa e garantias individuais.
A análise detalhada de cada inciso e parágrafo do artigo 5º revela a complexidade e a riqueza normativa desse dispositivo, cuja interpretação sistemática e teleológica permite sua adaptação às transformações sociais e jurídicas experimentadas ao longo de quase oito décadas de vigência do Código de Processo Penal.
Os desafios contemporâneos à aplicação do artigo 5º, como o inquérito policial eletrônico, as investigações defensivas, os meios alternativos de resolução de conflitos penais e as investigações em crimes cibernéticos, demandam uma releitura constante de seus dispositivos, sem comprometer sua essência e finalidade: assegurar que a persecução penal seja iniciada de forma legítima, transparente e conforme os princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito.
As perspectivas de reforma legislativa, por sua vez, apontam para possíveis modificações no sistema investigativo brasileiro, que poderão alterar significativamente a interpretação e aplicação do artigo 5º. Contudo, independentemente dessas mudanças, a compreensão dos fundamentos e da sistemática desse dispositivo permanece essencial para todos os operadores do Direito Processual Penal.
Por fim, é importante ressaltar que o estudo do artigo 5º do CPP não se esgota em sua dimensão técnico-jurídica. Sua aplicação cotidiana nas delegacias de polícia, nos gabinetes do Ministério Público e nas salas de audiência dos tribunais revela a face humana da justiça criminal, com suas virtudes e imperfeições. É nessa dimensão prática que o dispositivo revela sua verdadeira relevância, como instrumento de realização da justiça e de proteção dos direitos e garantias fundamentais.
FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 5º do CPP
1. O que é o inquérito policial e qual sua finalidade?
Resposta: O inquérito policial é um procedimento administrativo preliminar, conduzido pela Polícia Judiciária, que visa apurar a existência de infração penal e sua autoria, reunindo elementos que possam fundamentar a ação penal. Sua finalidade é fornecer subsídios ao titular da ação penal (Ministério Público ou ofendido) para decidir sobre o oferecimento da denúncia ou queixa-crime.
2. Quais são as formas de instauração do inquérito policial previstas no artigo 5º do CPP?
Resposta: O artigo 5º prevê três formas principais de instauração do inquérito policial: a) de ofício, pela própria autoridade policial; b) por requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público; c) por requerimento do ofendido ou de seu representante legal. Além dessas, o § 3º prevê a possibilidade de instauração a partir da comunicação de qualquer pessoa do povo (delatio criminis).
3. A autoridade policial pode se recusar a instaurar inquérito quando requisitado pelo Ministério Público?
Resposta: Não. A requisição do Ministério Público para instauração de inquérito policial tem caráter vinculante para a autoridade policial, que não pode recusar seu cumprimento. Trata-se de verdadeira ordem legal, diferentemente do requerimento do ofendido, que pode ser indeferido se a autoridade policial entender ausentes os pressupostos para a investigação.
4. Qualquer pessoa pode solicitar a instauração de um inquérito policial?
Resposta: Sim e não. Qualquer pessoa pode comunicar à autoridade policial a existência de um crime de ação pública (delatio criminis), conforme o § 3º do artigo 5º. Contudo, o requerimento formal para instauração do inquérito, nos termos do inciso II, só pode ser apresentado pelo ofendido ou por quem tenha qualidade para representá-lo. Nos crimes de ação privada, apenas o ofendido ou seu representante legal pode requerer a instauração do inquérito (§ 5º).
5. O que acontece se a autoridade policial indeferir o requerimento de instauração do inquérito?
Resposta: Se a autoridade policial indeferir o requerimento de instauração do inquérito, o ofendido pode recorrer administrativamente ao chefe de Polícia (Delegado-Geral de Polícia Civil ou Diretor-Geral da Polícia Federal), conforme prevê o § 2º do artigo 5º. Alternativamente, o ofendido pode procurar diretamente o Ministério Público, que poderá requisitar a instauração do inquérito ou, se entender presentes elementos suficientes, oferecer denúncia independentemente de inquérito.
6. Quais são os requisitos para o requerimento de instauração de inquérito pelo ofendido?
Resposta: O § 1º do artigo 5º estabelece três requisitos principais: a) narração do fato com todas as circunstâncias; b) individualização do indiciado ou seus sinais característicos, e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou, quando impossível, os motivos dessa impossibilidade; c) nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência. Esses requisitos devem ser atendidos “sempre que possível”, o que indica que sua ausência não impede necessariamente a instauração do inquérito se houver justificativa para tanto.
7. Como funciona a instauração de inquérito nos crimes de ação pública condicionada à representação?
Resposta: Nos crimes de ação pública condicionada à representação (como ameaça, lesão corporal leve, etc.), o § 4º do artigo 5º estabelece que o inquérito não poderá ser iniciado sem a representação do ofendido ou de seu representante legal. A representação é uma manifestação de vontade autorizando a persecução penal e constitui condição de procedibilidade tanto para o inquérito quanto para a ação penal.
8. E nos crimes de ação privada, como ocorre a instauração do inquérito?
Resposta: Nos crimes de ação privada (como calúnia, difamação e injúria), o § 5º do artigo 5º estabelece que a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la, ou seja, o ofendido ou seu representante legal. O inquérito, nesses casos, é facultativo e serve como instrumento para auxiliar o ofendido na coleta de elementos que fundamentarão eventual queixa-crime.
9. O que é a “verificação de procedência das informações” mencionada no § 3º do artigo 5º?
Resposta: A verificação de procedência das informações é um procedimento preliminar, sumário, que a autoridade policial realiza antes de instaurar formalmente o inquérito a partir de uma comunicação (delatio criminis). Seu objetivo é constatar a verossimilhança da notícia-crime, evitando a instauração de investigações infundadas. Não se confunde com o inquérito propriamente dito e, em regra, não comporta medidas invasivas ou constritivas de direitos.
10. A instauração de ofício do inquérito policial é compatível com o sistema acusatório?
Resposta: Há debate doutrinário sobre essa questão. Alguns entendem que a instauração de ofício do inquérito pela autoridade policial poderia comprometer a imparcialidade da investigação, afetando o sistema acusatório. Outros argumentam que, sendo o inquérito procedimento administrativo preliminar e não processo judicial, a atuação de ofício da autoridade policial seria manifestação do princípio da obrigatoriedade da ação penal e não comprometeria o sistema acusatório, desde que mantida a separação entre as funções de investigar, acusar e julgar.
11. O advogado pode acompanhar a instauração e o desenvolvimento do inquérito policial?
Resposta: Sim. Embora o artigo 5º não trate especificamente desse tema, o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94) e a Súmula Vinculante nº 14 do STF garantem ao advogado o direito de examinar os autos do inquérito, mesmo sem procuração, e de acompanhar depoimentos e interrogatórios de seu cliente. A Lei nº 13.245/2016 ampliou esses direitos, permitindo a assistência do advogado durante o interrogatório e reforçando o direito de acesso aos elementos já documentados no inquérito.
12. As provas colhidas durante o inquérito policial instaurado conforme o artigo 5º do CPP têm valor probatório no processo penal?
Resposta: As provas colhidas durante o inquérito policial têm valor informativo, servindo como base para a formação da opinio delicti do titular da ação penal. Contudo, por serem produzidas sem contraditório e ampla defesa, não podem fundamentar, isoladamente, uma condenação criminal. Para adquirirem valor probatório pleno, precisam ser submetidas ao contraditório judicial ou constituírem provas irrepetíveis, cautelares ou antecipadas, nos termos do artigo 155 do CPP.