Artigo 6º do Código de Processo Penal, Investigação Criminal

Artigo 6º do Código de Processo Penal: Um Guia Prático e Teórico sobre as Diligências Iniciais da Investigação Criminal

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Introdução

O sistema processual penal brasileiro, estruturado a partir do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, que instituiu o Código de Processo Penal (CPP), estabelece os parâmetros fundamentais para a persecução penal no país. Dentre os diversos dispositivos que compõem esse diploma legal, o artigo 6º ocupa posição de notável relevância, ao delinear as providências iniciais que devem ser adotadas pela autoridade policial logo após tomar conhecimento da ocorrência de uma infração penal.

Este artigo apresenta-se como verdadeiro roteiro operacional para a autoridade policial, dispondo sobre as diligências essenciais na fase preliminar da investigação criminal. Sua redação atual, com dez incisos que contemplam desde a preservação do local do crime até a coleta de informações sobre filhos de pessoas presas, reflete uma constante evolução legislativa, atenta às exigências de uma investigação criminal eficiente e, ao mesmo tempo, respeitosa aos direitos e garantias fundamentais.

A importância do artigo 6º transcende o âmbito meramente procedimental, alcançando dimensões epistemológicas, ao estabelecer as bases para a reconstrução histórica do fato delituoso; garantísticas, ao assegurar a observância de direitos fundamentais durante a investigação; e probatórias, ao disciplinar a coleta e preservação dos elementos que poderão subsidiar a futura ação penal.

O presente estudo propõe-se a examinar, de forma sistemática e aprofundada, cada um dos incisos que compõem o artigo 6º do CPP, destacando sua relevância prática, os desafios para sua implementação e sua interpretação à luz da Constituição Federal e dos tratados internacionais de direitos humanos. Busca-se, assim, contribuir para a compreensão da importância desse dispositivo para a efetividade e legitimidade da investigação criminal no sistema processual penal brasileiro.

1. Contextualização Histórica e Sistemática do Artigo 6º do CPP

1.1. Evolução Histórica do Dispositivo

O artigo 6º do Código de Processo Penal integra o título que disciplina o inquérito policial, procedimento administrativo que constitui a principal forma de investigação preliminar no sistema processual penal brasileiro. Sua redação original, de 1941, já contemplava a maior parte das diligências atualmente previstas, refletindo a preocupação do legislador com a sistematização dos atos investigativos iniciais.

Ao longo de seus mais de 80 anos de vigência, o dispositivo sofreu alterações pontuais, com destaque para a modificação introduzida pela Lei nº 8.862/1994, que deu nova redação ao inciso II, e para o acréscimo do inciso X, promovido pela Lei nº 13.257/2016. Tais alterações, embora específicas, demonstram a adaptabilidade do texto às transformações sociais e às novas exigências do sistema de justiça criminal.

A longevidade do dispositivo, com poucas alterações substanciais, evidencia sua importância estrutural para o sistema investigativo brasileiro e sua capacidade de adequação, por via interpretativa, às evoluções doutrinárias e jurisprudenciais no campo processual penal.

1.2. Inserção Sistemática no Código de Processo Penal

O artigo 6º situa-se no Título II do Livro I do CPP, que trata do inquérito policial. É precedido pelo artigo 5º, que disciplina as formas de instauração do inquérito, e sucedido pelo artigo 7º, que regulamenta a requisição de documentos ou dados necessários à investigação. Essa sequência normativa revela uma lógica procedimental clara: primeiro, define-se como se inicia o inquérito (artigo 5º); em seguida, estabelecem-se as providências iniciais a serem adotadas (artigo 6º); e, por fim, disciplina-se a obtenção de elementos complementares (artigo 7º).

A localização topográfica do dispositivo no início do título dedicado ao inquérito policial sublinha sua função de orientação preliminar, estabelecendo diretrizes que condicionam toda a atividade investigativa subsequente. As diligências ali previstas constituem, em grande medida, o alicerce sobre o qual se edificará a investigação criminal.

1.3. Natureza Jurídica das Diligências Previstas

As providências elencadas no artigo 6º possuem natureza jurídica híbrida. Por um lado, configuram atos de investigação, destinados a esclarecer a materialidade e autoria da infração penal. Por outro, alguns desses atos, como o exame de corpo de delito, assumem caráter de atos de formação antecipada de prova, podendo ser valorados na fase processual mesmo sem repetição em juízo, quando se tratar de provas irrepetíveis, cautelares ou antecipadas (artigo 155, parágrafo único, do CPP).

Essa dualidade de natureza repercute diretamente na eficácia probatória dos elementos colhidos com base no artigo 6º, tornando essencial a compreensão de seus pressupostos e requisitos para a correta valoração no curso do processo penal.

2. Análise dos Incisos do Artigo 6º do CPP

2.1. A Preservação do Local do Crime (Inciso I)

O inciso I do artigo 6º determina que a autoridade policial, ao tomar conhecimento da prática de infração penal, deve “dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais”.

Esta primeira providência reveste-se de importância fundamental para o êxito da investigação criminal, constituindo o que a criminalística denomina “isolamento e preservação do local de crime”, etapa inicial do exame de local, que visa garantir a integridade dos vestígios deixados pela infração penal.

A preservação do local do crime fundamenta-se no princípio da cadeia de custódia da prova, hoje expressamente reconhecido nos artigos 158-A a 158-F do CPP, introduzidos pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime). A manutenção do estado das coisas permite aos peritos criminais examinar o cenário do delito tal como encontrado após o evento criminoso, potencializando a identificação e coleta de vestígios e a reconstrução da dinâmica dos fatos.

A jurisprudência dos tribunais superiores tem reiteradamente reconhecido a relevância da preservação do local de crime, chegando a considerar que sua violação injustificada pode comprometer a confiabilidade da prova pericial. No entanto, a mesma jurisprudência reconhece que nem sempre é possível manter intocado o local, especialmente em casos que demandam socorro imediato à vítima ou quando se trata de locais públicos de grande movimentação.

Na prática policial brasileira, a implementação deste dispositivo enfrenta desafios consideráveis, como a escassez de recursos humanos e materiais para o isolamento adequado do local, a demora na chegada da equipe pericial e a falta de consciência de agentes públicos (como policiais militares) e da população sobre a importância da preservação. Tais dificuldades revelam a necessidade de maior investimento em capacitação e equipamentos, bem como em campanhas de conscientização.

2.2. A Apreensão de Objetos Relacionados ao Fato (Inciso II)

O inciso II estabelece o dever da autoridade policial de “apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais”. A redação atual deste inciso foi dada pela Lei nº 8.862/1994, que explicitou a necessidade de aguardar a liberação pelos peritos criminais antes da apreensão, reforçando a importância da análise técnico-científica preliminar.

A apreensão de objetos relacionados ao crime cumpre dupla finalidade: probatória, ao preservar instrumentos, produtos e proveitos do crime para futura análise e valoração judicial; e cautelar patrimonial, ao assegurar a eficácia de eventual sentença condenatória quanto à perda de bens ou valores.

Os objetos sujeitos à apreensão podem ser classificados em: a) corpus delicti (elementos materiais que compõem a própria infração penal); b) instrumenta sceleris (meios utilizados para a prática do crime); c) producta sceleris (produtos diretos do crime); e d) objecta sceleris (quaisquer outros objetos que possam ter relação com o fato).

Em relação aos procedimentos de apreensão, o artigo 6º deve ser lido em conjunto com outras disposições do CPP, como os artigos 240 (busca e apreensão), 243 (mandado de busca) e 245 a 250 (formalidades da diligência). A documentação adequada da apreensão, com descrição minuciosa dos objetos no auto correspondente, é essencial para assegurar a cadeia de custódia e a idoneidade probatória.

Questão controversa refere-se à apreensão de dispositivos eletrônicos (como celulares e computadores), que tem suscitado debates sobre a extensão do mandado de busca e apreensão e a necessidade de autorização específica para acesso ao conteúdo digital. O Supremo Tribunal Federal, no RE 1.042.075, com repercussão geral reconhecida, ainda não definiu completamente os limites dessa apreensão, permanecendo o tema em aberto na jurisprudência.

2.3. A Colheita de Provas (Inciso III)

O inciso III prevê o dever da autoridade policial de “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”. Trata-se de dispositivo de textualidade ampla, que funciona como cláusula geral autorizadora da coleta de elementos informativos não especificados nos demais incisos.

Embora o dispositivo utilize o termo “provas”, a doutrina processualista contemporânea prefere a expressão “elementos informativos” para designar o material colhido na fase investigativa, reservando o termo “prova” para os elementos produzidos em juízo, sob contraditório. Essa distinção conceitual, hoje reconhecida no artigo 155 do CPP, não existia com a mesma clareza quando da edição original do Código.

A abrangência do inciso III confere à autoridade policial significativa discricionariedade na definição das diligências investigativas a serem realizadas, desde que legalmente admissíveis e voltadas ao esclarecimento dos fatos. Incluem-se nesse rol amplo a colheita de declarações de testemunhas informais, a requisição de documentos, a realização de diligências investigativas como campanas e infiltrações (estas com autorização judicial), e o uso de tecnologias como análise de imagens de câmeras de segurança.

Essa cláusula genérica deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais que limitam a atuação investigativa do Estado, como a inviolabilidade do domicílio, da intimidade e das comunicações. Assim, diligências que impliquem restrição a direitos fundamentais dependem de autorização judicial prévia e fundamentada, como estabelecido na jurisprudência dos tribunais superiores.

2.4. A Oitiva do Ofendido (Inciso IV)

O inciso IV estabelece o dever da autoridade policial de “ouvir o ofendido”. A vítima, tradicionalmente relegada a segundo plano no processo penal clássico, ganha aqui reconhecimento de sua importância como fonte de informação sobre o delito. As declarações do ofendido, embora não constituam tecnicamente prova testemunhal, representam valioso elemento informativo para a reconstrução histórica do fato criminoso.

Ao ouvir o ofendido, a autoridade policial deve adotar procedimentos específicos, documentando suas declarações e, sempre que possível, colhendo informações sobre a identificação do autor, circunstâncias do fato e eventuais prejuízos sofridos. O artigo 201 do CPP, ao disciplinar a inquirição do ofendido na fase judicial, estabelece parâmetros que podem ser aplicados, por analogia, à fase investigativa.

A Lei nº 11.690/2008 introduziu importantes inovações no tratamento conferido ao ofendido, garantindo-lhe o direito à comunicação dos atos processuais (especialmente os relacionados à prisão e liberdade do réu), à preservação de sua intimidade e segurança, e ao encaminhamento a serviços de assistência. Tais garantias, embora previstas para a fase processual, devem nortear também a atuação policial na fase investigativa.

Especial atenção merece a oitiva de vítimas vulneráveis, como crianças, adolescentes e mulheres em situação de violência doméstica. Nesses casos, recomenda-se a adoção de protocolos específicos, como o depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017 para crianças e adolescentes vítimas de violência, visando evitar a revitimização.

2.5. A Oitiva do Indiciado (Inciso V)

O inciso V determina que a autoridade policial deve “ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”.

O interrogatório do investigado constitui ato complexo, que serve tanto como meio de defesa quanto como possível fonte de elementos informativos. A remissão às regras do interrogatório judicial (artigos 185 a 196 do CPP) evidencia a preocupação com a garantia de direitos fundamentais, como o direito ao silêncio e à assistência de advogado.

A Constituição Federal de 1988, ao consagrar direitos como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, e a assistência jurídica, impactou profundamente a interpretação deste inciso. A presença do advogado no interrogatório policial, embora não expressamente mencionada no CPP original, tornou-se direito reconhecido na Lei nº 13.245/2016, que alterou o Estatuto da Advocacia.

Questão relevante refere-se à extensão do direito ao silêncio na fase investigativa. O Supremo Tribunal Federal reconhece que o investigado tem o direito de permanecer calado e não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), sem que disso possa resultar prejuízo jurídico. Esse direito deve ser informado expressamente antes do interrogatório, sob pena de nulidade.

A identificação das duas testemunhas para assinatura do termo, embora ainda prevista no texto legal, encontra dificuldades práticas em sua implementação, sendo muitas vezes substituída pela gravação audiovisual do interrogatório, prática que oferece maior segurança jurídica e transparência ao ato.

2.6. Reconhecimento de Pessoas e Coisas e Acareações (Inciso VI)

O inciso VI estabelece a competência da autoridade policial para “proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações”. Trata-se de meios de obtenção de prova específicos, disciplinados nos artigos 226 a 230 do CPP, cujo objetivo é confirmar a identidade de pessoas ou coisas relacionadas ao delito (reconhecimento) ou esclarecer divergências entre declarações sobre fato relevante (acareação).

A abrangência do inciso III confere à autoridade policial significativa discricionariedade na definição das diligências investigativas a serem realizadas, desde que legalmente admissíveis e voltadas ao esclarecimento dos fatos. Incluem-se nesse rol amplo a colheita de declarações de testemunhas informais, a requisição de documentos, a realização de diligências investigativas como campanas e infiltrações (estas com autorização judicial), e o uso de tecnologias como análise de imagens de câmeras de segurança.

Essa cláusula genérica deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais que limitam a atuação investigativa do Estado, como a inviolabilidade do domicílio, da intimidade e das comunicações. Assim, diligências que impliquem restrição a direitos fundamentais dependem de autorização judicial prévia e fundamentada, como estabelecido na jurisprudência dos tribunais superiores.

2.4. A Oitiva do Ofendido (Inciso IV)

O inciso IV estabelece o dever da autoridade policial de “ouvir o ofendido”. A vítima, tradicionalmente relegada a segundo plano no processo penal clássico, ganha aqui reconhecimento de sua importância como fonte de informação sobre o delito. As declarações do ofendido, embora não constituam tecnicamente prova testemunhal, representam valioso elemento informativo para a reconstrução histórica do fato criminoso.

Ao ouvir o ofendido, a autoridade policial deve adotar procedimentos específicos, documentando suas declarações e, sempre que possível, colhendo informações sobre a identificação do autor, circunstâncias do fato e eventuais prejuízos sofridos. O artigo 201 do CPP, ao disciplinar a inquirição do ofendido na fase judicial, estabelece parâmetros que podem ser aplicados, por analogia, à fase investigativa.

A Lei nº 11.690/2008 introduziu importantes inovações no tratamento conferido ao ofendido, garantindo-lhe o direito à comunicação dos atos processuais (especialmente os relacionados à prisão e liberdade do réu), à preservação de sua intimidade e segurança, e ao encaminhamento a serviços de assistência. Tais garantias, embora previstas para a fase processual, devem nortear também a atuação policial na fase investigativa.

Especial atenção merece a oitiva de vítimas vulneráveis, como crianças, adolescentes e mulheres em situação de violência doméstica. Nesses casos, recomenda-se a adoção de protocolos específicos, como o depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017 para crianças e adolescentes vítimas de violência, visando evitar a revitimização.

2.5. A Oitiva do Indiciado (Inciso V)

O inciso V determina que a autoridade policial deve “ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”.

O interrogatório do investigado constitui ato complexo, que serve tanto como meio de defesa quanto como possível fonte de elementos informativos. A remissão às regras do interrogatório judicial (artigos 185 a 196 do CPP) evidencia a preocupação com a garantia de direitos fundamentais, como o direito ao silêncio e à assistência de advogado.

A Constituição Federal de 1988, ao consagrar direitos como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, e a assistência jurídica, impactou profundamente a interpretação deste inciso. A presença do advogado no interrogatório policial, embora não expressamente mencionada no CPP original, tornou-se direito reconhecido na Lei nº 13.245/2016, que alterou o Estatuto da Advocacia.

Questão relevante refere-se à extensão do direito ao silêncio na fase investigativa. O Supremo Tribunal Federal reconhece que o investigado tem o direito de permanecer calado e não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), sem que disso possa resultar prejuízo jurídico. Esse direito deve ser informado expressamente antes do interrogatório, sob pena de nulidade.

A identificação das duas testemunhas para assinatura do termo, embora ainda prevista no texto legal, encontra dificuldades práticas em sua implementação, sendo muitas vezes substituída pela gravação audiovisual do interrogatório, prática que oferece maior segurança jurídica e transparência ao ato.

2.6. Reconhecimento de Pessoas e Coisas e Acareações (Inciso VI)

O inciso VI estabelece a competência da autoridade policial para “proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações”. Trata-se de meios de obtenção de prova específicos, disciplinados nos artigos 226 a 230 do CPP, cujo objetivo é confirmar a identidade de pessoas ou coisas relacionadas ao delito (reconhecimento) ou esclarecer divergências entre declarações sobre fato relevante (acareação).

O reconhecimento de pessoas, disciplinado no artigo 226 do CPP, deve seguir formalidades rigorosasA abrangência do inciso III confere à autoridade policial significativa discricionariedade na definição das diligências investigativas a serem realizadas, desde que legalmente admissíveis e voltadas ao esclarecimento dos fatos. Incluem-se nesse rol amplo a colheita de declarações de testemunhas informais, a requisição de documentos, a realização de diligências investigativas como campanas e infiltrações (estas com autorização judicial), e o uso de tecnologias como análise de imagens de câmeras de segurança.

Essa cláusula genérica deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais que limitam a atuação investigativa do Estado, como a inviolabilidade do domicílio, da intimidade e das comunicações. Assim, diligências que impliquem restrição a direitos fundamentais dependem de autorização judicial prévia e fundamentada, como estabelecido na jurisprudência dos tribunais superiores.

2.4. A Oitiva do Ofendido (Inciso IV)

O inciso IV estabelece o dever da autoridade policial de “ouvir o ofendido”. A vítima, tradicionalmente relegada a segundo plano no processo penal clássico, ganha aqui reconhecimento de sua importância como fonte de informação sobre o delito. As declarações do ofendido, embora não constituam tecnicamente prova testemunhal, representam valioso elemento informativo para a reconstrução histórica do fato criminoso.

Ao ouvir o ofendido, a autoridade policial deve adotar procedimentos específicos, documentando suas declarações e, sempre que possível, colhendo informações sobre a identificação do autor, circunstâncias do fato e eventuais prejuízos sofridos. O artigo 201 do CPP, ao disciplinar a inquirição do ofendido na fase judicial, estabelece parâmetros que podem ser aplicados, por analogia, à fase investigativa.

A Lei nº 11.690/2008 introduziu importantes inovações no tratamento conferido ao ofendido, garantindo-lhe o direito à comunicação dos atos processuais (especialmente os relacionados à prisão e liberdade do réu), à preservação de sua intimidade e segurança, e ao encaminhamento a serviços de assistência. Tais garantias, embora previstas para a fase processual, devem nortear também a atuação policial na fase investigativa.

Especial atenção merece a oitiva de vítimas vulneráveis, como crianças, adolescentes e mulheres em situação de violência doméstica. Nesses casos, recomenda-se a adoção de protocolos específicos, como o depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017 para crianças e adolescentes vítimas de violência, visando evitar a revitimização.

2.5. A Oitiva do Indiciado (Inciso V)

O inciso V determina que a autoridade policial deve “ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”.

O interrogatório do investigado constitui ato complexo, que serve tanto como meio de defesa quanto como possível fonte de elementos informativos. A remissão às regras do interrogatório judicial (artigos 185 a 196 do CPP) evidencia a preocupação com a garantia de direitos fundamentais, como o direito ao silêncio e à assistência de advogado.

A Constituição Federal de 1988, ao consagrar direitos como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, e a assistência jurídica, impactou profundamente a interpretação deste inciso. A presença do advogado no interrogatório policial, embora não expressamente mencionada no CPP original, tornou-se direito reconhecido na Lei nº 13.245/2016, que alterou o Estatuto da Advocacia.

Questão relevante refere-se à extensão do direito ao silêncio na fase investigativa. O Supremo Tribunal Federal reconhece que o investigado tem o direito de permanecer calado e não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), sem que disso possa resultar prejuízo jurídico. Esse direito deve ser informado expressamente antes do interrogatório, sob pena de nulidade.

A identificação das duas testemunhas para assinatura do termo, embora ainda prevista no texto legal, encontra dificuldades práticas em sua implementação, sendo muitas vezes substituída pela gravação audiovisual do interrogatório, prática que oferece maior segurança jurídica e transparência ao ato.

2.6. Reconhecimento de Pessoas e Coisas e Acareações (Inciso VI)

O inciso VI estabelece a competência da autoridade policial para “proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações”. Trata-se de meios de obtenção de prova específicos, disciplinados nos artigos 226 a 230 do CPP, cujo objetivo é confirmar a identidade de pessoas ou coisas relacionadas ao delito (reconhecimento) ou esclarecer divergências entre declarações sobre fato relevante (acareação).

O reconhecimento de pessoas, disciplinado no artigo 226 do CPP, deve seguir formalidades rigorosas para minimizar o risco de falsos reconhecimentos, fenômeno frequente na prática forense e apontado como causa de erros judiciários. Essas formalidades incluem a descrição prévia da pessoa a ser reconhecida, a apresentação do suspeito juntamente com outras pessoas com características semelhantes, e a não sugestão pelo condutor do ato.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no HC 598.886/SC, estabeleceu importantes diretrizes sobre o reconhecimento fotográfico e presencial, determinando a observância rigorosa das formalidades legais e a impossibilidade de condenação baseada exclusivamente em reconhecimento informal ou fotográfico não seguido de reconhecimento presencial. Essa decisão representa importante avanço na proteção contra reconhecimentos equivocados.

A acareação, por sua vez, consiste no confronto entre pessoas cujas declarações são divergentes sobre fato relevante. Embora prevista no CPP, sua eficácia prática é questionada pela doutrina, especialmente considerando o direito ao silêncio do investigado e as limitações inerentes a esse tipo de confrontação.

2.7. Perícias e Exames (Inciso VII)

O inciso VII atribui à autoridade policial o poder de “determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias”. Este dispositivo reconhece a importância fundamental da prova técnica para a elucidação de infrações que deixam vestígios materiais.

O exame de corpo de delito, disciplinado nos artigos 158 a 184 do CPP, constitui perícia destinada a comprovar a materialidade do delito nos crimes que deixam vestígios. Sua obrigatoriedade é expressa no artigo 158, que estabelece que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

A Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) trouxe importantes inovações neste campo, ao disciplinar expressamente a cadeia de custódia da prova (artigos 158-A a 158-F), visando garantir a rastreabilidade dos vestígios coletados no local de crime, desde sua identificação até sua análise pericial e eventual descarte.

A crescente complexidade das investigações criminais tem valorizado cada vez mais os exames periciais, destacando-se modalidades como análises de DNA, perícias balísticas, contábeis, informáticas e toxicológicas. Contudo, a infraestrutura pericial no Brasil permanece insuficiente em muitas localidades, representando desafio para a plena implementação deste dispositivo.

2.8. Identificação e Verificação de Antecedentes (Inciso VIII)

O inciso VIII determina que a autoridade policial deve “ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes”. Este dispositivo articula-se com o artigo 5º, LVIII, da Constituição Federal, que estabelece que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.

A identificação criminal é atualmente disciplinada pela Lei nº 12.037/2009, que estabelece as hipóteses excepcionais em que o civilmente identificado pode ser submetido à identificação criminal, como nos casos de documento de identidade que gere dúvidas, documento de identidade danificado, informações conflitantes, ou quando essencial às investigações policiais.

A identificação criminal compreende a identificação datiloscópica (impressões digitais) e fotográfica, podendo incluir também, conforme Lei nº 12.654/2012, a coleta de material biológico para obtenção do perfil genético, nos crimes previstos no artigo 9º-A da Lei de Execução Penal.

A juntada da folha de antecedentes visa fornecer informações sobre a vida pregressa do investigado no que se refere a envolvimentos anteriores com a justiça criminal, elemento que pode ser relevante para a definição de medidas cautelares e, futuramente, para a dosimetria da pena.

2.9. Averiguação da Vida Pregressa (Inciso IX)

O inciso IX estabelece o dever da autoridade policial de “averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter”.

Este dispositivo reflete influência da criminologia positivista do início do século XX, que atribuía grande importância à personalidade do agente na explicação do comportamento criminoso. Sua interpretação contemporânea deve ser cautelosa, observando limites constitucionais como a presunção de inocência e a proteção da privacidade.

Na prática atual, a averiguação da vida pregressa concentra-se principalmente em aspectos objetivos relevantes para a investigação, como relações pessoais com a vítima, histórico de conflitos, situação profissional e condições socioeconômicas que possam ter relação com o delito investigado.

A coleta dessas informações deve respeitar a dignidade do investigado e os limites constitucionais à intervenção estatal na vida privada. A invasão desproporcional da privacidade ou a coleta de dados por meios ilícitos podem resultar na inadmissibilidade dos elementos obtidos.

2.10. A Reconstituição do Crime (Inciso X)

Por fim, o inciso X prevê que a autoridade policial deve “reconstituir, quando possível, a cena do crime, com o indiciado e com o ofendido, para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo”.

A reconstituição do crime, disciplinada no artigo 7º do CPP, constitui diligência complexa que visa reproduzir a dinâmica dos fatos investigados, verificando a compatibilidade das versões apresentadas com as circunstâncias materiais do local e demais elementos apurados.

Trata-se de procedimento facultativo (“quando possível”), dependente da anuência dos envolvidos, pois o investigado não pode ser obrigado a participar ativamente da reconstituição, em respeito ao princípio do nemo tenetur se detegere. Sua realização depende também de condições práticas, como acesso ao local dos fatos e viabilidade técnica da reprodução.

A reconstituição deve ser documentada de forma minuciosa, preferencialmente com registros fotográficos e audiovisuais, além do auto circunstanciado. Sua validade como elemento de informação depende da observância de formalidades que garantam a fidelidade da reprodução e respeitem os direitos dos envolvidos.

3. Considerações Finais

O artigo 6º do Código de Processo Penal, ao estabelecer as providências iniciais a serem adotadas pela autoridade policial ao tomar conhecimento da prática de infração penal, constitui verdadeiro roteiro investigativo que, apesar de redigido em 1941, mantém sua atualidade e relevância no contexto do sistema processual penal brasileiro.

A interpretação contemporânea desse dispositivo deve considerar as profundas transformações ocorridas no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a Constituição de 1988, que consagrou um amplo rol de direitos e garantias fundamentais. Estes direitos impõem limites à atividade investigativa do Estado e exigem uma releitura dos poderes conferidos à polícia judiciária.

As providências elencadas no artigo 6º do CPP devem ser compreendidas como instrumentos para a busca da verdade possível sobre os fatos investigados, sempre com observância do devido processo legal, da presunção de inocência e do respeito à dignidade humana. A eficiência da investigação criminal não pode ser obtida a qualquer custo, mas deve harmonizar-se com as garantias constitucionais.

Os avanços tecnológicos e científicos aplicados à investigação criminal, como análises genéticas, rastreamento de dados digitais e novas técnicas periciais, têm potencializado a eficácia das diligências previstas no artigo 6º, exigindo constante atualização dos profissionais responsáveis por sua implementação.

Por fim, cabe ressaltar que a qualidade da investigação criminal, materializada nas providências iniciais do artigo 6º, repercute diretamente na instrução processual e na prestação jurisdicional. Investigações bem conduzidas, com respeito às formalidades legais e garantias fundamentais, contribuem para a redução de erros judiciários e para a efetividade do sistema de justiça criminal.


Perguntas Frequentes (FAQ) sobre o Artigo 6º do Código de Processo Penal

1. O que é o Artigo 6º do Código de Processo Penal?

O Artigo 6º do Código de Processo Penal estabelece as providências que a autoridade policial deve tomar ao ter conhecimento da prática de uma infração penal. É um roteiro investigativo fundamental que orienta as primeiras ações da polícia judiciária na investigação criminal.

2. Quais são as principais providências previstas no Artigo 6º do CPP?

Entre as principais providências estão: preservação do local do crime, apreensão de objetos relacionados ao fato, colheita de provas, oitiva do ofendido e do indiciado, reconhecimento de pessoas e coisas, determinação de perícias, identificação do indiciado, averiguação da vida pregressa e reconstituição do crime.

3. Por que a preservação do local do crime é tão importante?

A preservação do local do crime é fundamental pois permite aos peritos criminais examinar o cenário do delito tal como encontrado após o evento criminoso, potencializando a identificação e coleta de vestígios. A alteração do estado das coisas pode destruir evidências valiosas e comprometer toda a investigação. A preservação está diretamente ligada ao princípio da cadeia de custódia da prova, garantindo a confiabilidade dos elementos probatórios coletados.

4. Quais são as consequências da não observância das formalidades do artigo 6º?

As consequências variam conforme a natureza da irregularidade. Em casos graves, como a obtenção de provas por meios ilícitos ou o desrespeito a garantias fundamentais do investigado, pode ocorrer a inadmissibilidade do elemento informativo no processo. Em situações menos graves, como falhas formais no auto de apreensão, pode haver apenas a diminuição do valor probatório do elemento, sujeito a confirmação por outros meios de prova durante a instrução processual.

5. O investigado é obrigado a participar da reconstituição do crime?

Não. A participação do investigado na reconstituição do crime é facultativa, em respeito ao princípio constitucional de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere). A recusa em participar é direito do investigado e não pode ser interpretada como indício de culpa.

6. O que mudou na interpretação do artigo 6º após a Constituição Federal de 1988?

A Constituição Federal de 1988 trouxe um amplo catálogo de direitos e garantias fundamentais que impactou profundamente a interpretação do artigo 6º. Princípios como a presunção de inocência, o contraditório, a ampla defesa e a inadmissibilidade de provas ilícitas passaram a limitar a atividade investigativa estatal. A dignidade da pessoa humana tornou-se parâmetro fundamental para a avaliação da legitimidade das diligências investigativas.

7. Como funciona o reconhecimento de pessoas mencionado no inciso VI?

O reconhecimento de pessoas deve seguir rigorosamente as formalidades previstas no artigo 226 do CPP, que incluem: descrição prévia da pessoa a ser reconhecida pela testemunha ou vítima; colocação do suspeito ao lado de outras pessoas com características semelhantes; não indução ou sugestão pelo condutor do ato; e documentação detalhada do procedimento. O STF tem exigido a observância rigorosa dessas formalidades, sob pena de invalidade do reconhecimento.

8. Qual a diferença entre “provas” e “elementos informativos” coletados na fase de inquérito?

Embora o artigo 6º utilize o termo “provas”, a doutrina processual contemporânea prefere denominar o material colhido na investigação como “elementos informativos”, reservando o termo “prova” para os elementos produzidos em juízo, sob contraditório. Os elementos informativos têm valor probatório limitado, conforme estabelece o artigo 155 do CPP, que veda a condenação baseada exclusivamente em elementos do inquérito policial, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

9. Em quais situações um civilmente identificado pode ser submetido à identificação criminal?

Conforme a Lei nº 12.037/2009, a identificação criminal do civilmente identificado é possível em situações excepcionais, como: quando o documento apresentar rasura ou indício de falsificação; quando o documento for insuficiente para identificação; quando o investigado portar documentos de identidade distintos com informações conflitantes; quando a identificação criminal for essencial às investigações policiais; quando constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; ou quando o estado de conservação do documento dificultar a identificação.

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