Análise Jurídica do Artigo 24 da Lei Maria da Penha A Proteção Patrimonial da Mulher em Situação de Violência Doméstica1

Análise Jurídica do Artigo 24 da Lei Maria da Penha: A Proteção Patrimonial da Mulher em Situação de Violência Doméstica

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Introdução

A violência doméstica e familiar contra a mulher não se restringe à esfera física ou psicológica. Muitas vezes, o agressor também adota estratégias para atingir a autonomia financeira e o patrimônio da vítima, utilizando bens como instrumentos de controle, intimidação ou punição. Diante dessa realidade, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) inclui mecanismos específicos voltados à proteção patrimonial da mulher em situação de violência.

O artigo 24 da Lei Maria da Penha estabelece um conjunto de medidas protetivas patrimoniais que o juiz pode adotar liminarmente, com o objetivo de preservar os bens da mulher, quer sejam de propriedade exclusiva, quer componham a sociedade conjugal. Essas medidas revelam um avanço significativo no entendimento da violência de gênero como um fenômeno multidimensional, que afeta direitos fundamentais como a propriedade, o sustento e a dignidade.

Neste artigo, será realizada uma análise sistemática do artigo 24 da Lei Maria da Penha, com destaque para os fundamentos jurídicos, a interpretação doutrinária, os reflexos práticos e a importância da proteção patrimonial como parte integrante do direito das mulheres a uma vida livre de violência.


I. Texto Legal do Artigo 24 da Lei Maria da Penha

Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.


II. Finalidade do Artigo 24: Proteção Patrimonial como Garantia de Dignidade

A inclusão do artigo 24 na Lei Maria da Penha reafirma a dimensão patrimonial da violência doméstica, que muitas vezes se manifesta por meio de:

  • Retenção indevida de bens e documentos;
  • Alienação ou ocultação de patrimônio comum;
  • Apropriação de recursos financeiros da mulher;
  • Impedimento do uso de bens essenciais;
  • Manipulação de procurações e contratos para prejudicar a vítima.

Tais práticas configuram abuso econômico, uma das expressões mais sutis e menos visibilizadas da violência de gênero. Proteger o patrimônio da mulher é proteger sua autonomia, sua capacidade de reconstruir a vida e sua segurança jurídica. A vulnerabilidade patrimonial tende a agravar o ciclo de dependência da vítima em relação ao agressor, razão pela qual as medidas previstas no artigo 24 são essenciais para garantir a eficácia das demais proteções previstas na Lei Maria da Penha.


III. Natureza Jurídica das Medidas do Art. 24

As medidas previstas no artigo 24 possuem natureza de tutela provisória de urgência e podem ser concedidas liminarmente, ou seja, antes da oitiva da parte contrária e da formação completa do contraditório, desde que presentes os requisitos do fumus boni iuris (fumus boni iuris) e do periculum in mora.

Além disso, o artigo admite a aplicação de medidas outras além das expressamente previstas, o que confere ao juiz poder geral de cautela e flexibilidade para adaptar as decisões às peculiaridades do caso concreto. A ampla interpretação do rol do artigo 24 é fundamental para evitar lacunas na proteção patrimonial da mulher.


IV. Análise Detalhada dos Incisos do Artigo 24

Inciso I – Restituição de bens indevidamente subtraídos

Essa medida busca reparar a apropriação indébita de bens que pertencem exclusivamente à mulher ou à sociedade conjugal. Pode abranger:

  • Veículos;
  • Roupas;
  • Celulares e equipamentos eletrônicos;
  • Cartões bancários ou documentos pessoais;
  • Recursos financeiros desviados ou transferidos sem autorização.

É comum, por exemplo, que o agressor retenha objetos essenciais ao cotidiano da mulher ou bens com valor sentimental, como forma de coerção ou vingança. A restituição liminar desses bens devolve à vítima a dignidade, a independência e o direito à propriedade.

Inciso II – Proibição de atos de disposição patrimonial

Impede que o agressor, de forma unilateral, celebre contratos de compra, venda, locação ou oneração de bens comuns com o objetivo de lesar a vítima. A medida exige expressa autorização judicial, o que confere controle sobre atos de disposição do patrimônio da família, especialmente quando há indícios de má-fé.

Essa proibição é crucial em casos em que o agressor tenta “dilapidar” os bens da sociedade conjugal, vender o imóvel comum, alugar propriedades sem consentimento ou realizar movimentações financeiras que comprometam a estabilidade econômica da vítima.

Inciso III – Suspensão de procurações outorgadas

A medida suspende, de forma liminar, os efeitos de procurações que tenham sido outorgadas pela ofendida ao agressor, a fim de impedir o uso indevido do mandato para prejudicar os interesses patrimoniais da vítima.

É comum que, durante a relação conjugal, a mulher conceda ao parceiro poderes para movimentar contas, administrar imóveis, vender bens ou assinar contratos. Em caso de separação conflituosa com histórico de violência, essa delegação pode se tornar uma ferramenta de abuso, devendo ser imediatamente suspensa para preservar o patrimônio da mulher.

Inciso IV – Caução provisória por perdas e danos

Trata-se de uma medida que visa garantir, ainda em sede liminar, a reparação de danos materiais causados pelo agressor, como:

  • Danos em veículos ou imóveis;
  • Quebra de objetos pessoais;
  • Extravio de documentos;
  • Danos decorrentes de mudança forçada de domicílio.

O depósito judicial de uma caução representa segurança patrimonial à vítima, servindo como reserva para futura indenização e inibindo práticas danosas.


V. Parágrafo Único: Comunicação aos Cartórios

O parágrafo único do artigo 24 impõe ao juiz o dever de oficiar ao cartório competente para dar publicidade às decisões que suspendem procurações ou limitam atos de disposição patrimonial. Isso garante:

  • Efetividade jurídica das medidas protetivas;
  • Evita fraudes e contratações indevidas;
  • Gera segurança jurídica para terceiros de boa-fé.

Ao comunicar o cartório de imóveis ou o cartório de registro civil, o juiz assegura que as medidas tenham efeito extrajudicial, blindando o patrimônio da mulher contra atos dolosos do agressor.


VI. Interação do Art. 24 com o Direito de Família e o Direito Civil

As medidas protetivas patrimoniais dialogam diretamente com normas do Direito Civil, especialmente nos seguintes aspectos:

  • Regime de bens e comunhão parcial (CC, arts. 1.658 e seguintes);
  • Administração do patrimônio comum;
  • Responsabilidade civil por atos ilícitos (art. 186 do CC);
  • Revogação de mandato por justa causa (art. 682, II, do CC).

Também se relacionam com o Direito de Família, ao impedir que, em nome do casamento ou da união estável, o agressor se utilize de prerrogativas conjugais para cometer abusos patrimoniais.


VII. Fundamentos Constitucionais e Convencionais

O artigo 24 encontra respaldo em diversos fundamentos legais e internacionais, entre os quais:

  • Constituição Federal – arts. 1º, III; 5º, XXII e XXIII; 226, §8º;
  • Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW);
  • Convenção de Belém do Pará;
  • Princípios de igualdade de gênero e proteção da família.

A violação patrimonial praticada no âmbito doméstico compromete o exercício de direitos constitucionais fundamentais, tais como o direito à moradia, à subsistência, à integridade moral e à dignidade humana.


VIII. Casos Práticos e Jurisprudência

O Poder Judiciário tem ampliado a aplicação do artigo 24, inclusive reconhecendo o abuso econômico como forma de violência doméstica. Veja-se:

“A subtração de veículo da ofendida pelo ex-companheiro, com intenção de prejudicá-la financeiramente, justifica a restituição imediata do bem, nos termos do art. 24, I, da Lei Maria da Penha.”
(TJMG – Agravo de Instrumento 1.0000.21.074831-6/001)

“A suspensão de procuração por instrumento público é medida compatível com a proteção de urgência do art. 24, III, da Lei nº 11.340/2006, visando impedir o uso indevido de poderes outorgados durante a união.”
(TJSP – Agravo de Instrumento 2123603-93.2022.8.26.0000)

Esses precedentes demonstram a importância da atuação rápida e eficaz do Poder Judiciário para salvaguardar o patrimônio da mulher e evitar novos episódios de violência.


IX. Desafios na Aplicação do Art. 24

Apesar dos avanços legislativos, a implementação prática do artigo 24 enfrenta entraves, como:

  • Desconhecimento de operadores do direito sobre o abuso patrimonial;
  • Dificuldade de acesso a cartórios e registros públicos;
  • Ausência de padronização nos procedimentos de comunicação judicial;
  • Morosidade no cumprimento das medidas, o que pode acarretar dano irreparável.

É essencial promover capacitação dos agentes do sistema de justiça, além de fomentar ações educativas sobre a dimensão patrimonial da violência de gênero.


X. Considerações Finais

O artigo 24 da Lei Maria da Penha simboliza um importante avanço jurídico ao reconhecer que a proteção da mulher exige também a tutela de sua esfera econômica e patrimonial. As medidas ali previstas asseguram que a vítima não seja revitimizada por meio de perdas materiais ou manipulação financeira, promovendo a autonomia e a reparação dos danos sofridos.

A proteção patrimonial é parte integrante da luta pelo fim da violência doméstica. Trata-se, portanto, de um instrumento de empoderamento e de justiça material, indispensável à plena efetividade da Lei Maria da Penha.


FAQ – Perguntas Frequentes sobre o Artigo 24 da Lei Maria da Penha

1. Quais tipos de bens podem ser protegidos pelo artigo 24?

Bens da sociedade conjugal ou de propriedade exclusiva da mulher, como imóveis, veículos, móveis, recursos financeiros, cartões bancários e documentos pessoais.

2. O juiz pode suspender uma procuração dada pela mulher ao agressor?

Sim. O artigo 24, inciso III, permite a suspensão liminar de procurações que conferem poderes patrimoniais ao agressor, para evitar prejuízos à vítima.

3. A restituição de bens exige prova de propriedade?

Preferencialmente, sim. A vítima deve demonstrar que o bem lhe pertence ou que foi subtraído indevidamente pelo agressor. Mas a urgência pode justificar medidas liminares com base em indícios.

4. É necessário processo criminal para aplicar as medidas do artigo 24?

Não. As medidas podem ser requeridas e concedidas independentemente de ação penal, desde que haja indícios de violência doméstica com risco patrimonial à vítima.

5. O que é caução provisória por perdas e danos?

É um depósito judicial feito pelo agressor, determinado liminarmente, para garantir a indenização por danos materiais causados à vítima, como destruição de bens.

6. O artigo 24 protege apenas mulheres casadas?

Não. Protege qualquer mulher em situação de violência doméstica, inclusive em uniões estáveis, relações afetivas informais ou quando há apenas coabitação ou vínculo familiar.

7. Como é feita a comunicação ao cartório?

O juiz deve oficiar ao cartório de registro civil ou de imóveis sobre a suspensão de procurações ou restrição à venda de bens, para impedir registros contrários à decisão judicial.

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